quarta-feira, 11 de março de 2015

O poder dos analistas na cultura do Mercado

O actual modelo financeiro que domina em absoluto o capitalismo global dos dias de hoje – realidade incontestada tanto à direita como à esquerda! – assenta toda a sua eficácia em dois pilares essenciais, constituídos por duas nebulosas redes de poder: a bem (p)reservada rede de ‘off-shores’ (os famigerados ‘paraísos fiscais’) e a tentacular rede de ‘analistas do mercado’, vulgarmente designados apenas por ‘analistas’, tão dominadores e exclusivos eles se tornaram. Os primeiros funcionam como o destino privilegiado de refúgio do capital errante, a sua base material; os segundos actuam em nome e para o mercado, são eles que o moldam ao sabor de ideologias que tão bem acoitam os viscosos interesses que servem e entranham (corroendo) as sociedades, são eles, enfim, o mercado (mesmo que a maioria deles colha ‘apenas’ as migalhas destinadas aos serventuários – ainda assim chorudas mordomias se aferido pela bitola dos rendimentos obtidos pelo comum das pessoas).

Penetrar neste santuário da moderna religião do mercado é privilégio reservado apenas aos seus fiéis corifeus e envolvente liturgia clerical. À vasta caterva de laicos exige-se acomodação reverente com a explicação de se tratar de assuntos reservados a especialistas dispondo dos meios técnicos para atingirem tão impenetrável percepção. Ainda assim, na imensa nebulosa de circuitos e processos que envolve os ‘off-shores’, é possível identificar redes, estabelecer ligações, localizar até moradas, construir afinal o intrincado meandro da parte mais visível deste autêntico submundo. Já quanto aos analistas, eles escudam-se atrás dessa designação anódina e confortável, mantendo um quase anonimato obsceno que lhes permite influenciar e determinar sem ser possível responsabilizá-los por quaisquer danos provocados. Mesmo a sua parte mais visível e identificável, as firmas de rating’, apesar do papel absolutamente determinante que exercem sobre as empresas e os países, nada parece poder acontecer-lhes como se observou após a sua desastrada (ou criminosa?) actuação na crise do ‘sub-prime’!

E se aos ‘off-shores’ ainda se atribui, na versão benévola, um cheirinho de ilícito e até se admite uma complacente reserva de práticas irregulares – porque na versão realista eles são apodados mesmo de antros de delinquência, tantas as situações delituosas em que incorrem, e isso não obstante terem sido constituídos precisamente com a finalidade de tornearem as leis nacionais! – já quanto aos analistas eles gozam, enquanto corpo profissional (apesar das inúmeras falhas, dramáticos fracassos…), de reconhecida áurea de competência técnica, o que lhes permite exibirem-se como detentores de certezas irrefutáveis que poucos ousam questionar. É essa convicção que perpassa por toda a informação transmitida diariamente pela comunicação social em que, por exemplo, o sobe e desce das cotações bolsistas (que garante o lastro de rigor científico da mensagem!) é acompanhado pela interpretação (psicanalítica?) dos humores de mercado, falando-se de sentimentos e de reacções antropomórficas que eles persentem existir a partir da simples manipulação estatística dos números!

A realidade construída pelos analistas – misto de esoterismo e charlatanice – pouco ou nada tem a ver com a vida real das pessoas. Mas é ela que domina e impregna por completo o quotidiano das sociedades modernas, que traça os limites do importante e do acessório, que define os valores e os princípios a observar. Os analistas são apenas a ponta visível de um universo financeiro de dimensões monstruosas com ligações a todos os aspectos e áreas da vida social, expoentes de práticas de um ‘modo de vida’ que não se limita à actuação bolsista em Wall Street ou na City, mas influencia e condiciona tanto a política na Grécia como a economia na China, do mesmo modo que o faz também (ainda que a outro nível) em situações tão aberrantes como a dos epifenómenos – assim se espera que sejam! – dos autoproclamados Estados Islâmicos/EIs (Iraque, Líbia, Nigéria…). Neste caso trata-se, como é óbvio, de um subproduto não desejado (dano colateral?), a face negra dessa realidade, mas ainda assim um derivado directo do jogo dúplice que caracteriza a cultura veiculada pela total mercantilização da vida na sua versão radical actual de absoluta financeirização. Não foram – não são! – ‘os grupos por trás desta aberração’ armados pelas mesmas potências que depois se apressam a condená-los pelas acções em que tais armas são usadas? Afinal quem gerou o monstro e a quem interessa a sua perpetuação?
    
A cada nova decapitação pelos fundamentalistas dos EIs, a reacção dos políticos de todo o mundo perante esse ritual macabro inominável tem-se esgotado num equivalente mas ineficaz ritual de comentários, acompanhado, como convém à ocasião, do conveniente ar pungente e fúnebre. Proferidas estas sentenças e assim apaziguadas as consciências, tudo parece retomar a regular ‘normalidade’. De que estes actos parecem já fazer parte – a par da litania recorrente com que os analistas continuam a pontuar a evolução das Bolsas e a marcar o rumo das sociedades. Para maior glória e proveito dessa entidade mítica e dominadora que dá pelo nome de ‘mercados’.
   
Os mais optimistas dirão que tudo isto não passa da espuma dos dias, que as manifestações mais bizarras ou mais aberrantes da actual dominante financeira não irão resistir às mais determinantes exigências materiais da existência humana, pois são estas que alicerçam a História. Mas os riscos da acção consciente que é suposto a política protagonizar vir a ser ultrapassada pelos acontecimentos, de não haver capacidade precisamente política para antecipar os efeitos e alterar as causas que têm vindo a produzir sociedades cada vez mais disfuncionais – aumento das desigualdades, expansão da violência, caos urbanístico, esgotamento dos recursos, predação ambiental… – permitindo que todos estes efeitos (e outros) arrastem as sociedades para situações de desfecho de todo imprevisível, avolumam-se e tornam-se cada dia mais sérios e consistentes. Até onde irá a democracia ser capaz de resistir aos contínuos avanços dos mercados talhados à medida pelos ditos analistas políticos - perdão, financeiros?