O ‘pequeno passo’ de um Acordo histórico
Cumprida a segunda fase da
mudança política em Portugal (a primeira ocorreu com a rejeição nas eleições
legislativas de 4Out. da alternativa austeritária da coligação da direita) com
a arrastada tomada de posse de um Governo que pretende inverter as prioridades
políticas actuais, pondo as pessoas no lugar dos mercados,
falta agora cumprir esse desígnio na sua essência. Descontada a farronca
inconsequente de um presidente à beira do fim (mas que esbraceja como se não
fosse deixar de o ser!), abortada a insolente campanha de uma frustrada oposição
presa à extremista tese da ilegitimidade de um governo saído maioritariamente
do parlamento recém-eleito (na obstinada fixação em eleições antecipadas, com o
único propósito de recuperar o poder agora perdido), os maiores obstáculos à
realização do Programa de Governo negociado entre toda a esquerda encontram-se
a outros níveis bem mais críticos. Não será da oposição visível e declarada
(parlamentar e presidencial) que advirão as maiores ameaças ao novo Governo,
elas emergem bem mais sérias e certas de outras paragens onde era suposto, pela
natureza dos seus intervenientes e das regras democráticas, prevalecer a neutralidade e a isenção.
Desde logo o da matilha neoliberal instalada na comunicação social – área que devia primar pela isenção e objectividade. Contudo,
o domínio ideológico é tão absoluto e insistente que sobra pouco espaço, de
tempo ou de lugar, para qualquer alternativa. O resultado é a uniformização das
mentalidades segundo o ‘pensamento ‘único’ neoliberal, a que a generalidade de
comentadores, especialistas, analistas, políticos e demais opinantes sujeita as
audiências. A prova pode ser feita nos diversos programas de ‘opinião pública’,
onde a forma estereotipada como os ouvintes se expressam, mesmo quando expõem posições
contrárias, revela bem a amálgama que daí resulta. Sendo hoje a capacidade de
moldar consciências e uniformizar comportamentos uma generalizada
característica mediática na formatação das opiniões públicas, a sua
subordinação ideológica constitui a primeira grande ameaça com que um poder que
pretende a mudança se irá seguramente confrontar. Já se percebeu que esse
alinhamento ditará tanto a ‘prioridade jornalística’
aos opositores da nova orientação política (seja por entrevista, pelo comentário,
em análise…), quanto procurará ‘amplificar
a mais pequena divergência’, real ou fantasiada, entre os três principais
parceiros desta solução.
Uma outra ameaça é a que provém
da Europa, mais propriamente das instituições europeias – onde seria
suposto preponderar mais a neutralidade. Depois da Grécia tudo parece ter
ficado mais claro sobre a limitada capacidade de decisão democrática de cada
estado membro da UE. O que ainda não ficou bem claro foi o âmbito desses
limites na construção de uma qualquer alternativa à ‘alternativa única’ imposta
por Bruxelas/Berlim. Mas depois da Grécia dificilmente os que impuseram a
humilhação do ‘Grexit’ admitirão qualquer desvio à linha política traçada. A
menos que a isso sejam obrigados pela realidade: a que for
imposta pelas inúmeras fissuras internas
à própria União (sejam de carácter económico – disfuncionalidade do
Euro, crise das dívidas…; ou de carácter político – eleições em Espanha,
autonomias regionais, referendo britânico…), ou pelas diversificadas dinâmicas externas (Síria-terrorismo-migrações,
agudizar da crise financeira mundial…). A actual deriva securitária, em resposta à ameaça terrorista, surge bem
oportuna como forma de justificar o âmbito mais alargado de restrições
à democracia que a prática do ‘pensamento
único’ exige – mesmo que os
respectivos propósitos aparentem não ter qualquer relação, directa ou
indirecta, entre si.
As maiores expectativas quanto ao
futuro desta nova solução governativa, no entanto, concentram-se em torno do que
se antecipa como um difícil
relacionamento entre o PS e os seus
parceiros à esquerda (BE, PCP, PEV e agora também o PAN) tendo em conta as
divergências de partida, a nível sociológico, ideológico e até histórico. A
tensão entre aquilo que se convencionou chamar de ‘moderação socialista’ face ao ‘radicalismo
de esquerda’ (ainda que se vislumbre uma facção radical no seio do próprio PS) será uma realidade sempre
presente enquanto durar o Acordo e
estender-se-á a todas as áreas políticas relevantes. O centro dessa tensão
estará, sem surpresas, no difícil e muito instável equilíbrio entre o ‘rigor
orçamental’ exigido pelo Tratado Orçamental e a ‘urgente reposição’
do esbulho perpetrado pela direita (em rendimentos e em direitos sociais e do
trabalho). Mas se a manutenção do acordo depende, antes de mais, desse
equilíbrio – com o PS a não abdicar do rigor
orçamental e a esquerda radical a exigir a reposição de direitos usurpados – ele irá ser constantemente posto
à prova, a partir desde logo do estrito cumprimento da lei vigente. É no
domínio do trabalho e da precarização das relações laborais que mais se faz
notar a urgência na reposição da legalidade subtraída: a nível dos contractos a prazo (renovados por tempo
indefinido), dos falsos recibos verdes
(sujeitos a horários, a dupla tributação e sem direitos sociais)…
A favor da manutenção e
estabilidade do Acordo milita a
certeza de que as principais vítimas de um eventual fracasso serão, em primeira
linha, os seus protagonistas. Essa é seguramente a sua maior garantia, bem
destacada aliás pela generalidade de quantos, à direita e à esquerda, se têm
pronunciado a propósito. E a convicção de, caso se mantenha o entendimento que
permitiu tal Acordo contra todas as
oposições e contrariedades – contra até os mais ansiados vaticínios de
desavenças e do seu inexorável termo para breve – ainda assim se tratar só do
primeiro passo para uma efectiva mudança
social, para já apenas destinado a repor equilíbrios perdidos pela acção
destruidora do fundamentalismo neoliberal. Daí o recurso às ‘velhas e esquerdistas’ receitas
keynesianas da retoma económica pela via da procura
interna na sua versão mais básica – o consumo das famílias – com receio de se meter o Estado nisto e
atrair-se a ira de Bruxelas! Tratar-se-á, afinal – como sempre na História – de
um pequeníssimo passo na longa, penosa, mas persistente caminhada em nome da
dignidade e da decência, contra todas as dependências e a desigualdade, em
nome, enfim, da permanentemente inacabada emancipação do homem. A convicção,
pois, de que a História não acaba aqui.
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