sábado, 7 de novembro de 2015

Mudança política em Portugal: da extrema-direita à esquerda

A perspectiva das negociações à esquerda se saldarem por um acordo de governo, permitiu revelar, talvez como nunca antes havia ainda acontecido, a verdadeira natureza da direita portuguesa. Da sobranceria inicial perante a mera intenção dos partidos em negociar, ao crescente nervosismo expresso numa irritação por vezes insultuosa, até ao clima de chantagem e ameaças (à medida que se foi convencendo que a intenção era para levar a sério e não apenas uma forma de ‘pressão negocial’), a direita nacional, vertida nos dois partidos que praticamente a esgotam (CDS/PP e PPD/PSD), demonstrou à evidência que quem a constitui – e quem conjunturalmente a lidera e a representa – revela os tiques totalitários com que frequentemente pretende estigmatizar (e excluir) a esquerda.

Importa esclarecer, entretanto, que o totalitarismo que impregna a ideologia e a prática da direita nacional lhe advém por duas vias. A primeira, universal e presente na globalidade das formações de direita (e em muitas ditas de esquerda, a que o PS até aqui não foi imune), decorre da ideologia do pensamento único neoliberal, imposto pelo que se designa de globalização inevitável construída na base da liderança incontestada dos mercados – expressa nas políticas de austeridade. Ao excluir qualquer alternativa fora desta concepção (que o acrónimo TINA sintetiza), esta ideologia revela-se antidemocrática e totalitária, ao nível dos totalitarismos que causticaram o séc. XX. O excessivo e acéfalo seguidismo evidenciado pelos prosélitos da versão lusa desta componente universal na formação do totalitarismo, pode explicar-se pelos resquícios, ainda presentes em alguns estratos, da herança salazarenta e da nostalgia colonialista (sobretudo nos ‘retornados’ mais revanchistas) – ambos contribuindo para diferenciar a direita portuguesa das suas congéneres europeias. Isso explicaria também o facto da extrema-direita em Portugal manter expressão residual (bem longe das conhecidas na Europa): coexistindo sem atritos no mesmo espaço partidário da direita tradicional, não vê vantagens nem necessita de se autonomizar.

Foi a esta promíscua amálgama de ideologias e interesses (dos negócios aos partidários), que o PS de António Costa, contra todos os Assis nele infiltrados, decidiu dizer não, porventura antevendo o risco de poder vir a perder o que resta da sua identidade social diluindo-se numa prática política que tudo submete ao poder dos mercados. De pronto, a histeria instalou-se na direita. Na direita dos políticos, dos comentadores, dos analistas TINA do pensamento único sem lugar a alternativas, dos democratas com pânico de, afinal, a democracia poder funcionar, todos manifestando uma incontida ira contra os evitáveis riscos de aventuras políticas ao arrepio da vontade de Bruxelas/Berlim. Costa é acusado de falta de ética, de golpista, de traição (o episódio Seguro…). A perspectiva de um governo à esquerda é caracterizada como ‘fraude eleitoral’, até mesmo como ‘golpe de estado’! Nunca como agora surgiram tantos especialistas em marxismo, leninismo, marxismo-leninismo, trotskismo e afins. Duvida-se que 1% sequer dos que esgrimem esses conceitos, as mais das vezes utilizados apenas para apostrofar adversários ou evidenciar negros presságios, saiba um mínimo do que eles envolvem. Nos seus raciocínios estereotipados, pensarão talvez que bastará a simples invocação do nome para incutir o terror desejado!

Não podem ignorar-se num futuro governo das esquerdas as dificuldades próprias de partidos com programas muito diferentes em áreas sensíveis, embora as grandes divergências entre PS e os partidos à sua esquerda – em torno do Tratado Orçamental (TO), Euro e renegociação da dívida – aparentem ser mais teóricas que práticas. Em teoria, o PS afirma-se a favor do Euro e do TO, contra a renegociação da dívida; Bloco e PCP dizem-se contra as duas primeiras, lutam pela terceira. Na prática, no entanto, é possível observar:
-        Sobre o TO, é hoje quase unânime a opinião de que é impossível de cumprir, nomeadamente no preceito de redução da dívida para 60% do PIB em ‘apenas’ 20 anos, nas condições económicas actuais (daí o PS falar na necessidade de uma leitura inteligente do Tratado, que mais não é que a sua derrapagem inevitável).
-        Quanto ao Euro, as assimetrias da sua construção só agora começam a ser evidenciadas e com enorme brutalidade, a nível económico e nomeadamente nos efeitos sociais: na prática todos estão de acordo que não pode continuar como está. Necessita, pois, de um maior amadurecimento para se confirmar como moeda inviável levando, portanto, à sua alteração ou mesmo à sua rejeição.
-        Por último, a renegociação da dívida irá colocar-se, mais cedo ou mais tarde (quanto mais tarde o for, maior a probabilidade de os seus efeitos serem mais desastrosos para todos, devedores e credores). Sabendo-se ser inevitável, falta apenas saber quando irá acontecer. Um dos actuais “vice” de Costa (Pedro Nuno Santos) foi co-autor (com F. Louçã, R. Cabral e Eugénia Pires) de uma proposta (modesta?) de renegociação da dívida.


Perante a cada vez mais evidente degradação das condições financeiras – a nível nacional, europeu e até mundial – a tarefa de António Costa e dos seus prováveis parceiros de esquerda no suporte de uma solução destinada acima de tudo a apear o poder totalitário da austeridade e em repor um mínimo de decência na vida colectiva afigura-se tremendamente difícil. Após as eleições, a esquerda (PS, BE, PCP) viu-se confrontada com um dilema político: assumir os resultados para, na sequência da campanha, estabelecer um acordo histórico para governar, travando a austeridade, ciente dos riscos de afrontar uma situação de extrema debilidade financeira, com perspectivas de agravamento; ou, na avaliação desses riscos, por mero tacticismo evitar o acordo e aguardar melhor oportunidade para derrubar o governo já empossado, permitindo à direita continuar no poder mantendo a austeridade permanente – além de não garantir sucesso, esse tacticismo acabaria por alienar todo o apoio eleitoral. A decisão, para além de todos os calculismos e pesados os riscos e os compromissos, só podia ser devolver às pessoas a vida roubada pela austeridade.

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