domingo, 23 de agosto de 2015

Sobre as leis do mercado: da ilusão da regulação aos artifícios da transparência

Com a globalização, o mercado impôs-se como a forma de organização social dominante em praticamente todos os países do mundo. Mesmo algumas ‘bolsas’ geográficas que se pretendem fora dele não deixam de evidenciar um maior ou menor grau de integração nas redes que o constituem, do comércio à finança, da tecnologia ao conhecimento e à ciência, contri- buindo para homogeneizar numa amálgama cultural, social e até política de contornos ainda não muito definidos, o mundo que virá a seguir. A ideologia neoliberal tenta explicar a forma aparentemente tão universal como este processo se impôs e desenvolveu com a própria natureza do mercado: tratar-se-ia de um modelo de organização natural – regulação automática – regido por leis em tudo idênticas às da natureza, sendo indispensável, por isso mesmo, condicioná-lo o menos possível na sua acção espontânea por forma a obter dele a máxima eficácia.

A História e a vida, no entanto, apressam-se a desmentir esta versão tão harmoniosa e idílica das coisas. Entregue apenas a si próprio e sem quaisquer limitações, o mercado tende a funcionar na base da regra do mais forte e a reproduzir, no limite, o ambiente da selva. A única forma de o tornar ‘civilizado’ e menos autodestrutivo é mesmo impor-lhe regras, estabelecer limites à lógica da sua acção natural – ou automática. Daí, hoje, todos aceitarem, pelo menos de um ponto de vista teórico, a necessidade de se estabelecerem regras de funcionamento social que permitam operacionalizar aquilo que de outro modo descambaria na… selvajaria: o controlo dos automatismos do mercado através de uma regulação externa.

A regulação externa do mercado, contudo, não pode deixar de ser vista e sentida como um entorse na lógica da acção espontânea do mercado, pelo que sempre que as coisas correm mal é à regulação que são assacadas as responsabilidades pelo insucesso. Curiosa e bem elucidativa, aliás, a perspectiva que, para a História real e vivida do capitalismo resulta do conflito oposto entre regulação e espontaneidade, entre mercado regulado e mercado livre. Acusado de interferir demasiado na sociedade, seja directa ou indirectamente pela via da regulação, é ao Estado que os mais lídimos defensores do mercado livre e da iniciativa privada recorrem perante os riscos de descalabro económico das suas políticas (como ainda agora aconteceu com esta persistente crise actual), confirmando a espúria e inconfessada – mas bem genuína – máxima liberal de que lhe cumpre garantir ‘lucros privados, públicos prejuízos’!

Não deixa de ser estranha a posição do suposto ‘regulador automático’ para poder funcionar de forma credível e transmitir confiança, necessitar da supervisão de um dispositivo de reguladores, o que, por outro lado, constitui ainda motivo de inúmeros equívocos e garante o desencadear de todas as diatribes e conflitos contra a intervenção do Estado (enquanto responsável pela ‘regulação dos reguladores’) na vida económica e social, normalmente sob pretexto de excesso de regulamentação burocrática e consequente perda de eficácia das acções que desencadeia. A prática da regulação externa – de pendor mais ‘regulador’ na expressão keynesiana e acentuadamente ‘desregulador’ na versão neoliberal (antes e após 2008) – evidenciou a total ineficácia dos reguladores em conter o mercado e os seus agentes dentro das normas estabelecidas, não obstante reconhecer-se a muito permeável malha legal concedida pelos poderes políticos.

Feita a prova de a regulação automática do mercado não funcionar (a menos que o objectivo seja mesmo a selva social), descredibilizada a eficácia da regulação externa do mercado (perante os dolorosos resultados a que conduziram as suas diversificadas práticas), fala-se agora de forma cada vez mais insistente em transparência, expressão deliberadamente opaca (malgrado o paradoxo) que se presta a múltiplos intentos, porque sem conteúdo objectivo. À parte a admissão nela implícita do fracasso a que as duas clássicas versões ‘reguladoras’ (a automática e a externa) conduziram, trata-se, em última análise, de mais uma tentativa de se apresentar o mercado, enquanto modelo de organização social, isento de responsabilidades dos dramas vividos pelas pessoas que lhe sofrem os seus efeitos, atribuindo-as por inteiro aos legisladores ou aos políticos encarregues de formular as regras do mercado e de as aplicar.

Perante uma imposta integração na ordem global a que presentemente todos se submetem, seja pela força (Iraque, Síria, Líbia…), seja pela humilhação (Grécia…), pouco importa se tal artifício ideológico visa legitimar a forma criminosa como essa integração se tem concretizado – brutal transferência de recursos e aumento das desigualdades, em prol, diga-se, de um exclusivismo cada vez mais selectivo – desviando as atenções do essencial (a organização do mercado) para o contingente (os agentes que conjunturalmente o gerem); ou se, estilhaçados os ‘muros’ geopolíticos da ‘diplomacia de blocos’, resta agora quebrar as frágeis amarras que a objectividade legal da regulação ainda constitui, transferindo o controlo para a mais dúctil subjectividade política da transparência. O resultado último pretendido será sempre ganhar tempo para um novo fôlego do sistema, garantir a ‘pureza’ das leis do mercado e, com elas, consolidar o poder dos que efectivamente o controlam e manipulam em seu proveito exclusivo: à cabeça, os supremos interesses do capital financeiro.

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