Com a globalização, o mercado
impôs-se como a forma de organização social dominante em praticamente todos os
países do mundo. Mesmo algumas ‘bolsas’ geográficas que se pretendem fora dele
não deixam de evidenciar um maior ou menor grau de integração nas redes que o
constituem, do comércio à finança, da tecnologia ao conhecimento e à ciência,
contri- buindo para homogeneizar numa amálgama cultural, social e até política de
contornos ainda não muito definidos, o mundo que virá a seguir. A ideologia
neoliberal tenta explicar a forma aparentemente tão universal como este
processo se impôs e desenvolveu com a própria natureza do mercado: tratar-se-ia
de um modelo de organização natural – regulação
automática – regido por leis em tudo idênticas às da natureza, sendo
indispensável, por isso mesmo, condicioná-lo o menos possível na sua acção
espontânea por forma a obter dele a máxima eficácia.
A História e a vida, no entanto,
apressam-se a desmentir esta versão tão harmoniosa e idílica das coisas. Entregue
apenas a si próprio e sem quaisquer limitações, o mercado tende a funcionar na
base da regra do mais forte e a reproduzir, no limite, o ambiente da selva. A
única forma de o tornar ‘civilizado’ e menos autodestrutivo é mesmo impor-lhe
regras, estabelecer limites à lógica da sua acção natural – ou automática. Daí,
hoje, todos aceitarem, pelo menos de um ponto de vista teórico, a necessidade
de se estabelecerem regras de funcionamento social que permitam operacionalizar
aquilo que de outro modo descambaria na… selvajaria: o controlo dos
automatismos do mercado através de uma regulação externa.
A regulação externa do mercado, contudo, não pode deixar de ser vista
e sentida como um entorse na lógica da acção espontânea do mercado, pelo que
sempre que as coisas correm mal é à regulação que são assacadas as
responsabilidades pelo insucesso. Curiosa e bem elucidativa, aliás, a perspectiva
que, para a História real e vivida do capitalismo resulta do conflito oposto
entre regulação e espontaneidade, entre mercado regulado e mercado livre. Acusado
de interferir demasiado na sociedade, seja directa ou indirectamente pela via
da regulação, é ao Estado que os
mais lídimos defensores do mercado livre e da iniciativa privada recorrem perante
os riscos de descalabro económico das suas políticas (como ainda agora aconteceu
com esta persistente crise actual), confirmando a espúria e inconfessada – mas bem
genuína – máxima liberal de que lhe cumpre garantir ‘lucros privados, públicos prejuízos’!
Não deixa de ser estranha a
posição do suposto ‘regulador automático’ para poder funcionar de forma
credível e transmitir confiança, necessitar da supervisão de um
dispositivo de reguladores, o que,
por outro lado, constitui ainda motivo de inúmeros equívocos e garante o
desencadear de todas as diatribes e conflitos contra a intervenção do Estado
(enquanto responsável pela ‘regulação dos reguladores’) na vida económica e
social, normalmente sob pretexto de excesso de regulamentação burocrática e
consequente perda de eficácia das acções que desencadeia. A prática
da regulação externa – de pendor mais ‘regulador’ na expressão keynesiana
e acentuadamente ‘desregulador’ na
versão neoliberal (antes e após 2008) – evidenciou a total ineficácia
dos reguladores em conter o mercado e os seus agentes dentro das normas
estabelecidas, não obstante reconhecer-se a muito permeável malha legal
concedida pelos poderes políticos.
Feita a prova de a regulação automática do mercado não funcionar (a menos que o objectivo seja mesmo a
selva social), descredibilizada a eficácia da regulação externa do mercado
(perante os dolorosos resultados a que conduziram as suas diversificadas
práticas), fala-se agora de forma cada vez mais insistente em transparência, expressão deliberadamente opaca (malgrado o paradoxo) que se
presta a múltiplos intentos, porque sem conteúdo objectivo. À parte a admissão nela
implícita do fracasso a que as duas clássicas versões ‘reguladoras’ (a automática
e a externa) conduziram, trata-se, em última análise, de mais uma tentativa de
se apresentar o mercado, enquanto modelo de organização social, isento de
responsabilidades dos dramas vividos pelas pessoas que lhe sofrem os seus
efeitos, atribuindo-as por inteiro aos legisladores ou aos políticos
encarregues de formular as regras do mercado e de as aplicar.
Perante uma imposta integração
na ordem global a que presentemente todos se submetem, seja pela força
(Iraque, Síria, Líbia…), seja pela humilhação (Grécia…), pouco importa se tal
artifício ideológico visa legitimar a forma criminosa como essa integração se
tem concretizado – brutal transferência de recursos e aumento das
desigualdades, em prol, diga-se, de um exclusivismo cada vez mais selectivo –
desviando as atenções do essencial (a
organização do mercado) para o contingente
(os agentes que conjunturalmente o gerem); ou se, estilhaçados os
‘muros’ geopolíticos da ‘diplomacia de blocos’, resta agora quebrar as frágeis
amarras que a objectividade legal da regulação ainda constitui, transferindo
o controlo para a mais dúctil subjectividade política da transparência.
O resultado último pretendido será sempre ganhar tempo para um novo fôlego do
sistema, garantir a ‘pureza’ das leis do mercado e, com elas, consolidar o
poder dos que efectivamente o controlam e manipulam em seu proveito exclusivo: à
cabeça, os supremos interesses do capital
financeiro.