quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

O que está em causa nas negociações entre a Grécia e a UE

O que está em causa nas negociações em curso entre a Grécia e as instituições europeias (com uma etapa a decorrer entre hoje e amanhã que se espera, senão decisiva, pelo menos elucidativa do que cada uma das partes defende) vai muito para além da ‘simples’ reestruturação da dívida – ou, como gostam de afirmar os indefectíveis do pagamento sem concessões, de ‘honrar compromissos’! O que verdadeiramente se joga nessas negociações são dois modelos de sociedade que se pretendem muito diferentes, tanto nos seus propósitos como nas suas bases e princípios, que se expressa no confronto entre dois tipos de 'reformas estruturais' bem opostas. De um lado as que apontam à defesa e aprofundamento do Estado Social, à redução das desigualdades, ao respeito pela dignidade (das pessoas, das nações, da própria democracia); do outro, as que impõem a liberalização absoluta e sem controlo das relações económicas (os controlos estabelecidos já se viu como se comportam…), a privatização do que resta dos sectores rentáveis da economia, a destruição da coisa pública (da administração aos direitos mais elementares). De um lado a defesa das pessoas e do seu bem-estar, do outro o império absoluto dos mercados!

Reestruturar dívidas é operação corrente no mundo das finanças, di-lo-á sem dificuldades nem subterfúgios qualquer banqueiro sensato – como o fez, por exemplo, Jardim Gonçalves em entrevista à RTP ainda não há muito tempo, reafirmando mesmo que as reestruturações se fazem todos os dias e antes de mais em benefício dos credores (o que não surpreende, pois nem outra coisa se esperaria de pessoas tão reiteradamente altruístas!). O que, sabendo-se do domínio que a Banca e a Finança exercem actualmente, não é coisa pouca. É por isso que a questão principal que divide gregos e UE/Merkel (e a pandilha menor de acólitos e serventuários sempre dispostos a gritar mais alto que os donos), não é se a Grécia vai ou não pagar e em que condições, mas se o Governo do Syriza se dobra à imposição de Bruxelas/Berlim para efectuar as ‘reformas’ indispensáveis à construção do modelo de dominação liberal que a denominada crise das dívidas (na boa tradição do disposto pela ‘Doutrina do Choque’) tão ‘afortunadamente’ lhes veio proporcionar.

A UE pode até ceder em quase tudo no que à dívida diz respeito, mas só o fará a troco da garantia de manutenção das famigeradas ‘reformas estruturais’ tendentes à instauração de uma sociedade organizada segundo o 'modelo liberal'. Resta então ver até onde o novo governo do Syriza terá capacidade para resistir a tamanha pressão ou se, perante um eventual insucesso no confronto agora provocado, mais uma vez voltará a ser a realidade da vida a impor-se à política, mas nesse caso previsivelmente já só da forma trágica e dolorosa que a História frequentemente regista. (Parêntesis para introduzir, neste contexto, um ‘pormenor’ não negligenciável: há que contar ainda com os efeitos já bem visíveis do consenso cada vez mais alargado em torno desta austeridade inútil, deste Euro disfuncional… – v.g. Vitor Bento!)

A este propósito, não resisto a transcrever aqui um excerto de um notável texto do economista Alexandre Abreu (via ‘Ladrões de Bicicletas’, com o respectivo link: O syriza e o luto da direita), que considero exemplar dos pontos de vista que venho defendendo há muito (de forma bem mais atabalhoada, diga-se). Sem mais comentários, pois, por desnecessários:

… não é no plano macroeconómico que as propostas do Syriza constituem uma ameaça para as elites europeias. É que a dívida é um instrumento e não um fim. Aquilo que de mais central está em causa não é a dívida e o seu reembolso, mas a sua utilização como instrumento de dominação. O que não pode ser posto em causa do ponto de vista das elites não é o montante da dívida ou o seu calendário de pagamento: a esse nível, como se tem visto nos últimos dias, pode sempre haver cedências. O que não pode ser posto em causa, em contrapartida, são os eixos centrais da dominação: a compressão dos salários e pensões, as "reformas estruturais" no mercado de trabalho, o esvaziamento do Estado social, as privatizações.
Sucede, porém, que é precisamente isso que o novo governo grego ameaça pôr em causa. E é precisamente por isso que, pela Europa fora como em Portugal, a direita e os seus porta-vozes - os intelectuais públicos dos grupos dominantes - não suportam o Syriza e o que ele representa, e têm reagido à sua subida ao poder na Grécia com o choque e atordoamento com que se faz um luto ou reage a uma tragédia(…)”.

Recomenda-se vivamente a leitura do restante texto. Está lá tudo dito (ou quase).

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