O que é que a corrupção tem a ver com a elevada produtividade e a alta tecnologia? Aparentemente nada
(pelo menos de forma directa), a menos que se pretenda considerar, aqui como em
qualquer outro domínio, os efeitos decorrentes da aplicação do velho princípio
de que ‘tudo se relaciona com tudo’. E, no entanto…
À parte os temas ditados pela
actualidade, a questão mais presente no espaço mediático é, sem contestação, a corrupção. Tanto a nível da informação
como da análise ou simples comentário, no âmbito nacional ou internacional
(embora, por razões óbvias, os países onde mais se destaca sejam os mais atingidos
pela austeridade!).
Apresentam-se factos, levantam-se suspeitas, constroem-se redes, elaboram-se
teorias, inventam-se casos se tal for necessário ou útil para aumentar as
tiragens ou as audiências. Num ambiente social propício, sedento até, em encontrar
culpados para a desconfortável situação em que a maioria vive, facilmente se
gera na opinião pública a percepção generalizada de este ser o principal
problema com que as pessoas se confrontam.
Daí até se arvorar a luta contra
a corrupção no propósito principal de transformação da sociedade, capaz de
resolver boa parte dos males de que padece ‘vai o passo de um anão’ (pode até
acrescentar-se, como na canção ‘e o trono é do ‘charlatão’!). Mas isso significa
abdicar-se da perspectiva histórica, a única que permite manter um
distanciamento crítico em relação aos acontecimentos do dia-a-dia. Não foi
certamente o ambiente dissoluto e altamente corrupto das elites romanas do ‘fim
do império’ que determinou a queda deste – embora tenha contribuído para lhe
apressar a decadência. De igual modo, não foi o fausto barroco a que se
entregava a corte do Rei Sol em França o princípio do fim do ‘ancien regime’ – ainda que haja concorrido
para acentuar, de forma assaz ofensiva, o fosso existente para a plebe (o
‘terceiro estado’ da estrutura feudal) e acelerar a revolta.
Tal como então, também hoje proliferam
os casos de alta corrupção, atingindo proporções desmedidas e,
dir-se-ia, descontroladas, apenas proporcionais ao crescimento do colossal
fosso que tem vindo a ser cavado entre as elites actuais, de natureza essencialmente
financeira, e a esmagadora maioria das classes populares. Tal como então,
também as elites de hoje se demonstram insaciáveis mas – nada historicamente original,
aliás – suicidárias para os seus próprios propósitos, pois não contentes com o
saque proporcionado pela ‘normal’ exploração permitida pelo sistema, não têm
pejo nem temor de, quando em dificuldades, recorrerem à imposição de insuportáveis
cargas fiscais. O resultado conjugado destes dois efeitos – corrupção e extorsão fiscal – tem-se revelado ao longo da História deveras demolidor
para as elites dominantes, mas na realidade não passa de sintoma de um
problema mais profundo que importa aperceber para além da aparência das coisas.
Por regra, o argumento moral das explicações de tipo comportamental (corrupção, violência…)
visa esconder ou ilibar as políticas que condicionam e determinam tais
comportamentos e ao mesmo tempo proporcionar a encarnação da culpa num objecto
físico onde descarregar a fúria e a frustração provocadas por essas políticas. Políticas
que, no essencial, insistem em consolidar privilégios, as mais das vezes à
custa do progresso e do bem-estar social. Mas, tal como o fim da Antiguidade Clássica ou do ‘ancien regime’ se ficou a dever
sobretudo à necessidade de adaptação de estruturas sociais caducas às novas
exigências técnicas e produtivas, também agora as sociedades modernas se
deparam com o desafio de encontrarem formas de organização social melhor
adaptadas aos níveis tecnológicos de uma crescente automação e ao enorme
impacto da elevada produtividade daí decorrente sobre a ocupação laboral,
tendo em vista uma melhor redistribuição dos benefícios produzidos
socialmente e a redução das desigualdades (principal factor que obsta ao
crescimento económico – e bem assim ao desenvolvimento – como defende, por
exemplo, a corrente teórica que vai de Kalecki a Piketty).
Enfim, de uma organização social orientada
para o interesse geral e não apenas para o de uma minoria decadente e rentista,
que privilegie a solidariedade em
detrimento da competição – do tão
exaltado espírito competitivo, a
marca de água do sistema, muito exacerbado
na sua actual e dominante versão neoliberal. E é precisamente o ambiente competitivo exacerbado que mais
propício se torna à corrupção, pois a propalada eficácia competitiva exigida na
obtenção dos resultados que garantem a sobrevivência das empresas (o máximo lucro, único critério que conta) impõe-lhes
o recurso a todos os meios para se afirmarem no mercado, uns mais engenhosos outros
mais capciosos, quase sempre na
fronteira do permitido pela lei (já de si um arremedo de legalidade) e sempre à margem de quaisquer considerações
de ordem moral ou ética. Como se tem vindo a comprovar na prática, ‘os fins justificam os meios’, o
importante é que, no final, os esquemas manhosos (ou as habilidades ousadas)
não venham a ser descobertos. Porque se o que importa é o mercado, contornar
a lei (ou o seu arremedo), seja através de expedientes jurídicos, seja pela
ausência eficaz de regulação, não anula o peso da censura social!
A dimensão actual da corrupção,
assente numa cada vez mais profunda desigualdade social e, em boa medida,
contribuindo para a ampliar, parece evidenciar algum paralelo com os dois
períodos históricos referidos. Sendo abusivo extrapolar situações irrepetíveis,
registe-se, contudo, os evidentes sintomas
de decadência que se detectam na ocorrência repetitiva e sobretudo na
magnitude de tais episódios, normalmente associados a momentos de viragem na
História. Para os mais despertos – a maioria, já se sabe, reagirá com indiferença – a uns soará
como alarme, a outros constituirá motivo de (dolorosa) esperança numa mudança estrutural que tarda. Para já,
a sensação de se estar próximo (quão próximo?) de um fim de ciclo, se torna
cada vez mais contestado e longínquo o mito neoliberal do Fim da História
– até já morto e enterrado pelo seu próprio autor! – augura, no desbravar
persistente de múltiplas experiências e tentativas, uma nova etapa social
ainda muito imprecisa.
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