terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Sintomas de decadência, sinais de mudança?

O que é que a corrupção tem a ver com a elevada produtividade e a alta tecnologia? Aparentemente nada (pelo menos de forma directa), a menos que se pretenda considerar, aqui como em qualquer outro domínio, os efeitos decorrentes da aplicação do velho princípio de que ‘tudo se relaciona com tudo’. E, no entanto…

À parte os temas ditados pela actualidade, a questão mais presente no espaço mediático é, sem contestação, a corrupção. Tanto a nível da informação como da análise ou simples comentário, no âmbito nacional ou internacional (embora, por razões óbvias, os países onde mais se destaca sejam os mais atingidos pela austeridade!). Apresentam-se factos, levantam-se suspeitas, constroem-se redes, elaboram-se teorias, inventam-se casos se tal for necessário ou útil para aumentar as tiragens ou as audiências. Num ambiente social propício, sedento até, em encontrar culpados para a desconfortável situação em que a maioria vive, facilmente se gera na opinião pública a percepção generalizada de este ser o principal problema com que as pessoas se confrontam.

Daí até se arvorar a luta contra a corrupção no propósito principal de transformação da sociedade, capaz de resolver boa parte dos males de que padece ‘vai o passo de um anão’ (pode até acrescentar-se, como na canção ‘e o trono é do ‘charlatão’!). Mas isso significa abdicar-se da perspectiva histórica, a única que permite manter um distanciamento crítico em relação aos acontecimentos do dia-a-dia. Não foi certamente o ambiente dissoluto e altamente corrupto das elites romanas do ‘fim do império’ que determinou a queda deste – embora tenha contribuído para lhe apressar a decadência. De igual modo, não foi o fausto barroco a que se entregava a corte do Rei Sol em França o princípio do fim do ‘ancien regime’ – ainda que haja concorrido para acentuar, de forma assaz ofensiva, o fosso existente para a plebe (o ‘terceiro estado’ da estrutura feudal) e acelerar a revolta.

Tal como então, também hoje proliferam os casos de alta corrupção, atingindo proporções desmedidas e, dir-se-ia, descontroladas, apenas proporcionais ao crescimento do colossal fosso que tem vindo a ser cavado entre as elites actuais, de natureza essencialmente financeira, e a esmagadora maioria das classes populares. Tal como então, também as elites de hoje se demonstram insaciáveis mas – nada historicamente original, aliás – suicidárias para os seus próprios propósitos, pois não contentes com o saque proporcionado pela ‘normal’ exploração permitida pelo sistema, não têm pejo nem temor de, quando em dificuldades, recorrerem à imposição de insuportáveis cargas fiscais. O resultado conjugado destes dois efeitos – corrupção e extorsão fiscal – tem-se revelado ao longo da História deveras demolidor para as elites dominantes, mas na realidade não passa de sintoma de um problema mais profundo que importa aperceber para além da aparência das coisas.

Por regra, o argumento moral das explicações de tipo comportamental (corrupção, violência…) visa esconder ou ilibar as políticas que condicionam e determinam tais comportamentos e ao mesmo tempo proporcionar a encarnação da culpa num objecto físico onde descarregar a fúria e a frustração provocadas por essas políticas. Políticas que, no essencial, insistem em consolidar privilégios, as mais das vezes à custa do progresso e do bem-estar social. Mas, tal como o fim da Antiguidade Clássica ou do ‘ancien regime’ se ficou a dever sobretudo à necessidade de adaptação de estruturas sociais caducas às novas exigências técnicas e produtivas, também agora as sociedades modernas se deparam com o desafio de encontrarem formas de organização social melhor adaptadas aos níveis tecnológicos de uma crescente automação e ao enorme impacto da elevada produtividade daí decorrente sobre a ocupação laboral, tendo em vista uma melhor redistribuição dos benefícios produzidos socialmente e a redução das desigualdades (principal factor que obsta ao crescimento económico – e bem assim ao desenvolvimento – como defende, por exemplo, a corrente teórica que vai de Kalecki a Piketty).

Enfim, de uma organização social orientada para o interesse geral e não apenas para o de uma minoria decadente e rentista, que privilegie a solidariedade em detrimento da competição – do tão exaltado espírito competitivo, a marca de água do sistema, muito exacerbado na sua actual e dominante versão neoliberal. E é precisamente o ambiente competitivo exacerbado que mais propício se torna à corrupção, pois a propalada eficácia competitiva exigida na obtenção dos resultados que garantem a sobrevivência das empresas (o máximo lucro, único critério que conta) impõe-lhes o recurso a todos os meios para se afirmarem no mercado, uns mais engenhosos outros mais capciosos, quase sempre na fronteira do permitido pela lei (já de si um arremedo de legalidade) e sempre à margem de quaisquer considerações de ordem moral ou ética. Como se tem vindo a comprovar na prática, ‘os fins justificam os meios’, o importante é que, no final, os esquemas manhosos (ou as habilidades ousadas) não venham a ser descobertos. Porque se o que importa é o mercado, contornar a lei (ou o seu arremedo), seja através de expedientes jurídicos, seja pela ausência eficaz de regulação, não anula o peso da censura social!

A dimensão actual da corrupção, assente numa cada vez mais profunda desigualdade social e, em boa medida, contribuindo para a ampliar, parece evidenciar algum paralelo com os dois períodos históricos referidos. Sendo abusivo extrapolar situações irrepetíveis, registe-se, contudo, os evidentes sintomas de decadência que se detectam na ocorrência repetitiva e sobretudo na magnitude de tais episódios, normalmente associados a momentos de viragem na História. Para os mais despertos – a maioria, já se sabe, reagirá com indiferença – a uns soará como alarme, a outros constituirá motivo de (dolorosa) esperança numa mudança estrutural que tarda. Para já, a sensação de se estar próximo (quão próximo?) de um fim de ciclo, se torna cada vez mais contestado e longínquo o mito neoliberal do Fim da História – até já morto e enterrado pelo seu próprio autor! – augura, no desbravar persistente de múltiplas experiências e tentativas, uma nova etapa social ainda muito imprecisa.

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