O debate político, em Portugal, é
actualmente dominado pelos moralistas da política. Com a prisão de Sócrates, esta
discussão exacerbou-se até ao paroxismo. Na verdade, a mais recente série de
casos, iniciada com o BES dos primos Ricardo e Ricciardi,
continuada na rede dos ‘vistos gold’ em que foram apanhadas
altas figuras do Estado, culminando agora na prisão do ex-Primeiro Ministro
(por indícios de corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal),
proporcionou aos moralistas de todos os quadrantes o melhor argumento às teses
que defendem e um poderoso incentivo à cruzada que empreenderam. Segundo eles,
o problema central do País é o alto nível de corrupção das suas elites,
Portugal encontra-se refém de um gang
de corruptos que se apossou da economia e da política, infernizando toda a
sociedade. Para alguns até, ‘Portugal é um país de corruptos’!
Ninguém ousará, por certo,
contestar a importância da luta contra a corrupção seja em que domínio for, da
economia à política, do âmbito local ao nacional. A corrupção é, sem dúvida, um
dos problemas que mais corrói e degrada a vida em sociedade, sempre assim foi. Impõe-se,
pois, denunciá-la e combatê-la. Sem subterfúgios ou restrições. Mas centrar a
política na luta contra a corrupção é menorizá-la reduzindo-a ao papel de
polícia, é eliminar as escolhas e as alternativas à situação vigente, é
permitir a perpetuação do poder que em cada momento a domina e orienta. No caso
presente, a tese que afirma ser a corrupção o tema central da vida nacional
insere-se bem na lógica dos proclamados e dominantes princípios neoliberais
erguidos para justificar a actual política
da austeridade: do “viver acima das nossas possibilidades” que conduziu à
“necessidade do País empobrecer” e, por último, ao TINA do “não há alternativa”
à austeridade!
Importa, contudo, explicitar o
lugar que a ‘luta contra a corrupção’ tem nesta política. Ela assume um
papel essencial, ainda que meramente instrumental, para se atingir um propósito
superior, o de, através dela, se atingir o Estado, em especial o peso das suas
funções sociais. O discurso contra a corrupção centra-se invariavelmente na
moralização da política e dos políticos (os gestores do Estado!), considerados a
origem e o principal foco de onde emana a maior parte das irregularidades
cometidas neste domínio. É precisamente isto que proclamam os seus principais
arautos, sejam eles políticos como Paulo Morais ou Henrique Neto (que, a
propósito da prisão de Sócrates, consegue aconselhar António Costa a ‘limpar a casa no próximo congresso’ sem apresentar uma única ideia política!), ou
jornalistas como Gomes Ferreira e Camilo Lourenço. Ou ainda, a outro nível, o
batido paradigma Medina Carreira. E até mesmo comentadores de esquerda como Daniel
Oliveira ou Joana Amaral Dias não se coíbem de centrar a luta política na moralização da sociedade (significativo
o facto de, alguns de ‘direita’, como Pedro Marques Lopes ou Pacheco Pereira, manifestarem
opinião diversa).
Não admira, pois, que,
transformado o Estado no principal agente e promotor da corrupção, a direita
neoliberal (e não só) considere positivo tudo o que contribua para lhe diminuir
o peso e a importância. Tanto nas doutrinárias pregações de Passos Coelho, como
sobretudo na prática política deste Governo, transparece a ideia de uma urgente
missão a cumprir: a de inverter o rumo do País, libertando-o das garras
estatistas em que, segundo eles, definhava. Ideia que, contudo, lhes é
anterior. Recorde-se que o início da governação de Sócrates pauta-se por um
conjunto emblemático de medidas visando racionalizar o Estado (com o salutar
propósito de eliminar desperdícios – as famosas
gorduras!), em especial nas áreas da justiça, saúde e educação. Cedo se
percebeu, entretanto, que os limites entre racionalizar
e destruir eram muito ténues e
facilmente transponíveis, aí começando o desmantelamento de áreas sensíveis do muito
frágil Estado Social português.
Eis, pois, dois virtuosos
princípios – racionalização e luta contra a corrupção – que
parecem reunir consenso generalizado, mas cuja concretização pode esconder
propósitos bem diferentes dos proclamados. Ninguém, por certo, se atreverá a
defender a corrupção ou uma política de favores. Enfatizo o que disse antes: a
corrupção é um problema social grave que destrói as sociedades! Mas uma
coisa é reconhecer a importância da sua denúncia e da luta para a debelar,
outra a de a considerar o tema central de uma sociedade disfuncional,
desviando as atenções dos principais problemas com que se defronta e que em boa
medida a originam e a alimentam: à cabeça, a absoluta financeirização da economia, cuja estrutura erguida nas últimas
décadas permanece incólume (incluindo os off-shores),
não obstante ter colocado o mundo à beira da catástrofe; depois, a manutenção
de uma organização social caduca,
porque desfasada da realidade técnica e produtiva actual, nomeadamente a nível
da distribuição do tempo de trabalho e da riqueza; ou ainda quanto à organização política do Estado, presa nos
limites da democracia representativa e da centralização administrativa…
É certo que actuar ‘apenas’
sobre os corruptos ‘apanhados’ nas esburacadas malhas da lei, centrar neles
toda a atenção, com o interessado apoio do circo mediático, permite ignorar,
por exemplo, a existência e o papel dos off-shores
nos níveis actuais da corrupção e da fraude fiscal. Actuar contra as
irregularidades bancárias (que até podem conduzir bancos à falência) na base de
leis permissivas construídas de propósito para permitirem ‘fugas e fintas’ jurídicas, desvia as atenções da exigência política
para se alterar o modelo de funcionamento de todo o sistema financeiro –
que continua a operar com os produtos e os comportamentos da prática bancária
construída nos últimos trinta anos de gradual desregulação e inteira
liberalização da actividade. É como abrir as portas da prisão e depois manifestar-se
surpresa por os presos, afinal, fugirem!
P.S. A mais recente pregação
do pífio evangelizador neoliberal Passos Coelho insere-se nesta mesma linha de
pensamento moralizador, que pretende ir para além da política. Sentencia ele: ‘no que
toca à disciplina orçamental e às reformas estruturais, não há esquerda
nem direita, há bom governo e mau governo’! Sem surpresas,
esta lógica moralista da distinção entre bons e maus, exclui as
escolhas políticas, afasta as alternativas democráticas, impondo a via única do
‘não há alternativa’. Atinge a democracia na sua essência. Apetece mesmo reproduzir
aqui a piada que corre nas redes sociais: ‘pior
do que ter um ex-Primeiro Ministro preso é ter o actual à solta’!
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