A propósito do aumento do salário
mínimo que entra hoje em vigor
Quando, em 2011, foi conhecido o
famigerado Memorando de Entendimento negociado pelo Governo português com a
troika, ouviu-se um coro, bem orquestrado e melhor apoiado nos costumeiros
comentadores mediáticos, de elogios à enorme sagacidade e fina percepção da
realidade portuguesa dos técnicos que a compunham pois, em pouco mais de um
mês, tais génios tinham detectado os males de que enfermava a sua economia (e a
sociedade) e conseguido delinear um detalhado e oportuno pacote de medidas
para, finalmente, os debelar e colocar as estruturas e as pessoas nos eixos de
onde teriam descarrilado com os excessos da… democracia! Coisa que,
acrescentava-se então, os políticos de sucessivos governos não tinham
conseguido operar, por incompetência, fraqueza ou puro oportunismo. Enfim, perversidades
próprias da democracia que o então já anunciado ‘governo de técnicos’ de Passos
Coelho certamente se encarregaria de sanar.
Começara a ter lugar, em
Portugal, havia um tempo, a aplicação da famosa ‘doutrina do choque’, bem explicada e documentada por Naomi Klein
(sintomático o facto de o documentário sobre o livro ter ‘desaparecido’ então,
ainda que temporariamente, do Youtube!). A que convém regressar de vez em quando
para que não se esqueça esta parte da ‘história da pulhice humana’! Partindo de
experiências de laboratório, levadas a cabo pela CIA nos anos 50, tendentes a
refazer a mente humana (mal sucedidas, como não podia deixar de ser) e das origens
cruzadistas do neoliberalismo com a criação da Societé Mont-Pelerin (com o
fervoroso contributo de, entre outros, Hayek e Friedman), a jornalista historia
os inúmeros ‘golpes’ perpetrados contra a democracia em nome da… ‘isenção dos mercados livres’! Do
clássico Chile de Pinochet até ao ‘choque e pavor’ do Iraque ou aos menos
óbvios e mal conhecidos processos de liberalização aplicados na África do Sul
(de Mandela, mas sob a direcção de Mbeki) e nos países de Leste após a queda da
União Soviética.
A versão indígena do choque
indispensável à aplicação da doutrina – com vista à implantação de um governo técnico baseado nas ditas isentas decisões dos mercados – vinha
sendo preparada há muito pelo clima de alarmismo e pânico difundido, de forma
mais ou menos consciente e premeditada, por arvorados especialistas e
enfeudados comentadores, em todos os areópagos públicos, com claro destaque
para as televisões. Dos Borges aos Camilos, dos Gomes Ferreira aos Medinas,
todos competiam a ver qual deles pintava o quadro mais negro. Ou apresentava a
solução mais radical. A estocada final foi dada, como é conhecido, com o
contributo das agências de rating – e os mercados criaram a troika!
Contudo, a tão decantada pré-ciência atribuída aos técnicos que a compunham,
veio a comprovar-se (embora sempre se soubesse) ter sido ‘soprada’ pela falange
interna de apaniguados.
Cedo se percebeu a monstruosa
mistificação com que se pretendeu apresentar a realidade e, desde logo, muitos
denunciaram a grosseira manipulação de todo este processo. Há cerca de dois
anos, perante dados então revelados, referia-se aqui que o “conteúdo do famoso memorando de entendimento foi
preparado pelo ‘think tank’ neoliberal local, constituído essencialmente pelos
respectivos núcleos da U. Nova e da U. Católica, que terão feito chegar à
troika as medidas que, em seu entender, importava aí incluir. Afinal o
famigerado plano de reformas que alguns dos habituais comentadores se
apressaram a atribuir à agilidade mental dos senhores da troika – por haverem
conseguido gizar em apenas cerca de um mês documento tão minucioso, revelando
um conhecimento específico notável! – fica a dever-se (o seu a seu dono), não à
inspiração divina da entidade externa, mas à pindérica (mas bem nutrida)
‘intectualite’ neoliberal interna e à sua agarotada versão política no PSD de Passos”(8/9/12). A enorme pressão exercida pelos media de serviço foi então mais forte
que a verdade. A insofismável evidência dos factos, porém, tem vindo a impor-se
generalizadamente e hoje já poucos acompanham o fraudulento discurso de um
governo dissimulado. Mesmo entre os seus indefectíveis.
Agora, passados mais de três anos
sobre a aplicação das drásticas medidas de austeridade justificadas pelas induzidas
e bem planeadas ondas de choque, perante a desconfiança das pessoas,
ludibriadas e fortemente causticadas nos seus direitos e interesses, para se
atingirem os mesmos objectivos, exigem-se renovados processos. Gato escaldado…
É precisamente esse o sentido das recentes chamadas de atenção por parte da
Comissão Europeia (logo secundadas pelo FMI) a propósito do miserável
aumento do salário mínimo. Tais avisos visam apenas contribuir para
renovar a imagem de um governo fortemente desgastado pela violenta regressão social
em que se empenhou. Acusado de não afrontar ou até de total subserviência
perante as imposições externas (dos mercados ou dos decisores em nome dos
mercados), as posições agora tomadas pela Comissão e o FMI pretendem transmitir
a ideia de firmeza e de autonomia das decisões do Governo, mas, ao mesmo tempo,
sancionar a versão deste de que era impossível ir mais longe no esforço
financeiro operado.
Este repetitivo jogo de
sombras e enganos ocorre precisamente quando, do outro lado da alternância,
Costa ascende ao poder do PS sem se haver comprometido com uma única medida
concreta para alterar este desgraçado estado de coisas. Também ele surge rodeado
de sombras e de fantasmas de um passado pouco recomendável: aos compromissos a
que se encontra amarrado (Tratado Orçamental, por mais que diga opor-se-lhe),
soma-se a gradual alienação da prática social-democrata por troca da total submissão
à ideologia neoliberal. E os equívocos em torno da inevitável renegociação da
dívida. Costa aposta, à sua maneira, também na quimera de que a Europa, a seu tempo,
será forçada a alterar o rumo das políticas de austeridade seguido até aqui. Mas
a proclamação de pretensos objectivos diferentes não parece bastante para
garantir uma alteração efectiva dessas políticas – o passado pesa como chumbo e…
gato escaldado…
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