sexta-feira, 31 de outubro de 2014

As habilidades manhosas das múltiplas engenharias financeiras

A sociedade portuguesa, causticada por três anos de austeridade inútil, ainda assim parece dar mostras de uma resignada acomodação. À parte a persistência de focos de resistência localizados, pressente-se por toda a parte, é certo, uma raiva surda e uma larvar irritação social, mas a sensação geral é de que parece acometida de um torpor pouco ajustado às inúmeras e persistentes malfeitorias infligidas. Até o frenesim que os habituais comentadores políticos costumam evidenciar em público soa pouco convicto e real, misto de descrença na mensagem proferida com a quase certeza da fraca aderência por parte dos seus receptores.

Ao longo dos últimos 30 anos, sob impulso da onda liberalizadora pacientemente preparada em ‘think tanks’ como a Société Mont Pèlerin (de Hayek e Friedman) e à medida que a desregulação liberal tinha lugar, o sistema financeiro foi-se impondo a todas as áreas sociais, consolidando um modo de vida substancialmente diferente dos 30 precedentes (os ’30 gloriosos anos’ do compromisso keynesiano e da criação do Estado Social – erguido para enfrentar a ameaça comunista!). Perante a crescente mobilidade do capital proporcionada pela gradual desregulação financeira – conduzindo à repressão salarial nos países do centro desenvolvido, sob pressão da deslocalização sem freios das actividades produtivas em busca de custos laborais mínimos – o sistema, para respirar e poder subsistir, socorreu-se do expediente do crédito barato, levando ao endividamento das pessoas, das empresas e, no fim, dos Estados. Como era previsível, no termo de inúmeras crises mais ou menos localizadas, o sistema viu-se confrontado com uma Crise Global de proporções nunca antes atingida, iniciada com a ‘crise do sub-prime’ nos EUA, seguida da denominada ‘crise das dívidas soberanas’ na UE.

A desregulação financeira proporcionou o surgimento de uma nova ‘ciência oculta’ (literalmente), a assim designada ‘engenharia financeira’ dos derivados, cujo objecto é tornar tão opaco o ‘produto financeiro’ daí resultante que ninguém, nem os seus próprios autores, lhe conseguem acompanhar o rasto. Os resultados, porém, não podiam ser mais animadores para os seus fautores: enquanto a generalidade dos pequenos aforradores se vê compelida, por ausência de alternativa, a subscrever tais produtos como forma de proteger da depreciação as suas poupanças, a actividade gera uma enorme ‘bolha especulativa’, fonte de inesgotáveis rendimentos para as classes financeiras. Os BPN, BPP e BES são apenas episódios domésticos (nem sequer os mais expressivos) de uma história trágica que submergiu milhões na miséria um pouco por toda a parte.

Mas nem os comprovados efeitos desastrosos de tamanha arteirice parecem suficientes para abalar a firmeza das estruturas financeiras, cujo domínio afronta o poder político, suposto supervisor do poder económico – mas que, por opção ideológica, se afirma alheado das ‘espontâneas (!) decisões do mercado livre’. Certo é que as práticas responsáveis pela hecatombe financeira se mantêm intactas e incólumes perante a lei. Como no caso do Morgan Stanley que se permite fazer o que bem entende (uma das últimas, a nota atribuída à PT – de quem é accionista – em suposto benefício dos seus eventuais compradores, entre eles a francesa Altice – de quem é assessora!), sem oposição legal efectiva ou comoção ética séria, apenas a pretensa crítica que se vislumbra por trás de uns poucos esgares resignados. Não deixa, pois, de surpreender (pelo seu ineditismo), se bem que revelador da teia instalada, o recente aviso do FED aos bancos americanos de que terão de mudar as suas práticas profissionais, caso contrário correm o risco de ser desmantelados (?) – só nos últimos 6 anos os principais bancos dos EUA pagaram mais de 100mM$ em multas por falhas éticas e atropelos à lei!

É esta mesma engenharia financeira que colocou o mundo na crise em que se encontra, que explica mais essa habilidosa artimanha deste governo que dá pelo nome de ‘crédito fiscal’. Concebida com o mesmo toque de génio, porventura até na mesma fábrica de sonhos liberal, com que foi parida a ‘exemplar solução’ que, à altura e perante aturdidos incautos, pareceu constituir o esquema de ‘resolução’ com que se pretendeu salvar os cacos do esfacelado BES. Sem molestar os contribuintes, afiançava-se. Logo então se percebeu (e por aqui ficou exarado) a fraude escondida nesse esquema manhoso e que, pouco a pouco, tem vindo a ser descoberto e denunciado. Mas não deixou de proporcionar aos seus promotores desmedidos encómios pela ousada inovação e de constituir então motivo de grande regozijo político por confronto com o fracasso de exemplos passados similares (BPN). Volvidos dois meses sobre tal achado, o desastre de antanho ameaça agora multiplicar-se e vir a desabar sobre os contribuintes, directamente ou por via da banca ‘obrigada’ a pagar os desmandos. Em contrapartida, os efeitos práticos do crédito fiscal parecem esgotar-se ‘tão só’ na propaganda política – ‘pormenor’ ainda assim, indispensável para se garantir pessoas resignadas e contenção social.

O governo, protegido (ou escondido) pelo ‘escudo de ferro’ a que se prestam os parlamentares da maioria, prossegue, imune à crítica e às tragédias provocadas pela sua política, a missão que se propôs de transformar o país de acordo com os princípios do fanatismo ideológico que o consome, custe o que custar! E o mais rápido possível, por forma a aproveitar a ‘boa onda’ gerada pela crise que, conforme as ‘boas práticas’ expostas no manual da ‘terapia do choque’, eles próprios ajudaram a incentivar. A conjugação da economia para os especialistas com a terapia do choque explicam, em boa medida, o que tolhe as pessoas e as impede de agir, num misto de ignorância e de medo!

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

A manipulação política, como arma da ‘Doutrina do Choque’

A propósito do aumento do salário mínimo que entra hoje em vigor

Quando, em 2011, foi conhecido o famigerado Memorando de Entendimento negociado pelo Governo português com a troika, ouviu-se um coro, bem orquestrado e melhor apoiado nos costumeiros comentadores mediáticos, de elogios à enorme sagacidade e fina percepção da realidade portuguesa dos técnicos que a compunham pois, em pouco mais de um mês, tais génios tinham detectado os males de que enfermava a sua economia (e a sociedade) e conseguido delinear um detalhado e oportuno pacote de medidas para, finalmente, os debelar e colocar as estruturas e as pessoas nos eixos de onde teriam descarrilado com os excessos da… democracia! Coisa que, acrescentava-se então, os políticos de sucessivos governos não tinham conseguido operar, por incompetência, fraqueza ou puro oportunismo. Enfim, perversidades próprias da democracia que o então já anunciado ‘governo de técnicos’ de Passos Coelho certamente se encarregaria de sanar.

Começara a ter lugar, em Portugal, havia um tempo, a aplicação da famosa ‘doutrina do choque’, bem explicada e documentada por Naomi Klein (sintomático o facto de o documentário sobre o livro ter ‘desaparecido’ então, ainda que temporariamente, do Youtube!). A que convém regressar de vez em quando para que não se esqueça esta parte da ‘história da pulhice humana’! Partindo de experiências de laboratório, levadas a cabo pela CIA nos anos 50, tendentes a refazer a mente humana (mal sucedidas, como não podia deixar de ser) e das origens cruzadistas do neoliberalismo com a criação da Societé Mont-Pelerin (com o fervoroso contributo de, entre outros, Hayek e Friedman), a jornalista historia os inúmeros ‘golpes’ perpetrados contra a democracia em nome da… ‘isenção dos mercados livres’! Do clássico Chile de Pinochet até ao ‘choque e pavor’ do Iraque ou aos menos óbvios e mal conhecidos processos de liberalização aplicados na África do Sul (de Mandela, mas sob a direcção de Mbeki) e nos países de Leste após a queda da União Soviética.

A versão indígena do choque indispensável à aplicação da doutrina – com vista à implantação de um governo técnico baseado nas ditas isentas decisões dos mercados – vinha sendo preparada há muito pelo clima de alarmismo e pânico difundido, de forma mais ou menos consciente e premeditada, por arvorados especialistas e enfeudados comentadores, em todos os areópagos públicos, com claro destaque para as televisões. Dos Borges aos Camilos, dos Gomes Ferreira aos Medinas, todos competiam a ver qual deles pintava o quadro mais negro. Ou apresentava a solução mais radical. A estocada final foi dada, como é conhecido, com o contributo das agências de rating – e os mercados criaram a troika! Contudo, a tão decantada pré-ciência atribuída aos técnicos que a compunham, veio a comprovar-se (embora sempre se soubesse) ter sido ‘soprada’ pela falange interna de apaniguados.

Cedo se percebeu a monstruosa mistificação com que se pretendeu apresentar a realidade e, desde logo, muitos denunciaram a grosseira manipulação de todo este processo. Há cerca de dois anos, perante dados então revelados, referia-se aqui que o “conteúdo do famoso memorando de entendimento foi preparado pelo ‘think tank’ neoliberal local, constituído essencialmente pelos respectivos núcleos da U. Nova e da U. Católica, que terão feito chegar à troika as medidas que, em seu entender, importava aí incluir. Afinal o famigerado plano de reformas que alguns dos habituais comentadores se apressaram a atribuir à agilidade mental dos senhores da troika – por haverem conseguido gizar em apenas cerca de um mês documento tão minucioso, revelando um conhecimento específico notável! – fica a dever-se (o seu a seu dono), não à inspiração divina da entidade externa, mas à pindérica (mas bem nutrida) ‘intectualite’ neoliberal interna e à sua agarotada versão política no PSD de Passos”(8/9/12). A enorme pressão exercida pelos media de serviço foi então mais forte que a verdade. A insofismável evidência dos factos, porém, tem vindo a impor-se generalizadamente e hoje já poucos acompanham o fraudulento discurso de um governo dissimulado. Mesmo entre os seus indefectíveis.

Agora, passados mais de três anos sobre a aplicação das drásticas medidas de austeridade justificadas pelas induzidas e bem planeadas ondas de choque, perante a desconfiança das pessoas, ludibriadas e fortemente causticadas nos seus direitos e interesses, para se atingirem os mesmos objectivos, exigem-se renovados processos. Gato escaldado… É precisamente esse o sentido das recentes chamadas de atenção por parte da Comissão Europeia (logo secundadas pelo FMI) a propósito do miserável aumento do salário mínimo. Tais avisos visam apenas contribuir para renovar a imagem de um governo fortemente desgastado pela violenta regressão social em que se empenhou. Acusado de não afrontar ou até de total subserviência perante as imposições externas (dos mercados ou dos decisores em nome dos mercados), as posições agora tomadas pela Comissão e o FMI pretendem transmitir a ideia de firmeza e de autonomia das decisões do Governo, mas, ao mesmo tempo, sancionar a versão deste de que era impossível ir mais longe no esforço financeiro operado.

Este repetitivo jogo de sombras e enganos ocorre precisamente quando, do outro lado da alternância, Costa ascende ao poder do PS sem se haver comprometido com uma única medida concreta para alterar este desgraçado estado de coisas. Também ele surge rodeado de sombras e de fantasmas de um passado pouco recomendável: aos compromissos a que se encontra amarrado (Tratado Orçamental, por mais que diga opor-se-lhe), soma-se a gradual alienação da prática social-democrata por troca da total submissão à ideologia neoliberal. E os equívocos em torno da inevitável renegociação da dívida. Costa aposta, à sua maneira, também na quimera de que a Europa, a seu tempo, será forçada a alterar o rumo das políticas de austeridade seguido até aqui. Mas a proclamação de pretensos objectivos diferentes não parece bastante para garantir uma alteração efectiva dessas políticas – o passado pesa como chumbo e… gato escaldado