quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Os dilemas da duplicidade, neste final morno de um pálido Verão

Há qualquer coisa de esquizofrénico no momento actual da política portuguesa e não é só o que se vislumbra por detrás da célebre tirada daquele inefável parlamentar de que ‘as pessoas estão pior, mas o País está muito melhor’! Com todos os indicadores a cair (incluindo até o do desemprego, mas este a exigir uma explicação pouco cómoda para o governo), não se percebe como é possível continuar a garantir que ‘o País está melhor’. No entanto, é isso mesmo que os pressurosos apparatchik deste regime que nos calhou em desgraça se apressam a afirmar, de forma matraqueada mas bem ensaiada, sempre que convidados pela comunicação social a pronunciar-se sobre o que quer que seja, pouco se importando com a vida real das pessoas. E o certo é que, para seu grande contentamento e proveito, constantemente lhes é dada essa oportunidade.

Na política, como em quase tudo o resto, tem vindo a ganhar preponderância a capacidade de representação dos seus respectivos actores. Assume-se mesmo que a política é a forma por excelência de representar – afinal não é suposto os políticos representarem os cidadãos que os elegeram? – valorizando-se aqui o significado cénico da palavra. Não obstante a duplicidade semântica do termo ‘representar’, o sentido atribuído à ‘representação política’ é o do mandato imperativo que sujeita o mandatado ao contracto eleitoral estabelecido com os seus mandantes. Perante a violação de tal contracto, a lógica democrática imporia a sua revogação – a qualquer momento e não apenas no final do ciclo eleitoral, como é a regra nas democracias ocidentais. Talvez isso explique, pelo menos em parte (face à sua permissiva impunidade), o crescente abandono dos valores que a ela se associavam – altruísmo, solidariedade, honradez – em nome do pragmatismo imposto por uma realidade económica totalitária, levando à ruptura com a realidade dos cidadãos que era suposto os políticos… representarem! A nível interno como internacional.

O final deste Verão, ainda no rescaldo nebuloso do colapso do BES, tem sido exemplar deste ponto de vista.

A nível interno, a direita vangloria-se de, no 2º rectificativo do exercício, os impostos não aumentarem. Ora, para além da mentira descarada (mais uma, até o insuspeito Marques Mendes exibiu uma longa lista de aumentos!), tenta esconder, numa desbragada acção de camuflagem em que tem contado com o precioso apoio da comunicação social, os efeitos devastadores ainda por apurar da implosão do BES. Na lógica, aliás, da mistificação montada em torno da dívida (da responsabilidade do sistema bancário, tal como este episódio veio confirmar, com estrondo, para quem ainda tinha dúvidas) e da ‘penitência’ imposta da austeridade (inútil) como ‘alternativa’ para a redimir. Para os anais, pois, ficará certamente o paradigma de duplicidade – a propaganda face à realidade – que constitui a política de mentira deste governo da direita ultraliberal.

O PS, já se sabe, preocupado com o ‘centro político’, privilegia um debate interno sobre personalidades. Em lugar da preparação de uma consistente alternativa política de esquerda (de que se assume como principal representante), prefere a gestão do poder actual. E a disputa, deserta de ideias e de propostas, centrada apenas em técnicas de charme eleitoral, opõe os que já ‘salivavam’ com a promessa à vista de uma pasta ministerial (para além do próprio líder Seguro, atente-se na pose e na atitude de alguns dos seus mais encarniçados indefectíveis: o redondo e agora mais inflamado João Proença para a área social ou do trabalho, o indizível Brilhante Dias para uma das áreas económicas…), à figura messiânica da sempre adiada ‘reserva Costa’ que decidiu (finalmente?) irromper na discussão pelo apetecido pitéu (o ‘pote’, no dizer do outro).

A esquerda (PCP e BE, sobretudo), ao invés, dir-se-ia confrontada com os efeitos partidários dos ‘excessos’ de coerência ideológica e de firmeza de posições políticas que a caracterizam. Aqui não se coloca o problema da duplicidade. Mas perante o crescente impasse social e os novos desafios partidários (Livre, Manifesto, Alternativa Democrática…), assume relevo inusitado o dilema sempre presente na estratégia desta área política: até onde irão manter a posição de ‘simples’ contestação ao poder dominante sem assumir o ónus de o exercer, escusando-se a servir, dado o actual contexto das forças políticas, de mero adorno de ‘esquerda’ a políticas de direita – mesmo que lideradas por um partido que se afirma de esquerda, o PS?

É a nível externo que os riscos desta duplicidade se mostram mais ameaçadores. A política ocidental de implantação à bomba de verdadeiras democracias (diziam…) – primeiro no Iraque (por Bush), depois, já com Obama, na Líbia, na Síria… – deu lugar, para já, ao ameaçador estado jihadista da República Islâmica e a um Estado falhado. Seja qual for a avaliação do ponto de vista do Ocidente, os resultados não podiam ser mais catastróficos e os riscos são imensos. Ainda que de um outro ponto de vista, a situação na Ucrânia é, ela também, o resultado dessa duplicidade de critérios (onde pára o Kosovo?). O declarado incentivo do Ocidente, liderado por essa aberração política que dá pelo nome de ‘Tea Party’ (mas com a conivência ou mesmo o apoio explícito, de Merkel e Obama – Kerry passeou-se na praça Maidan em Kiev durante a contestação), à queda do governo legítimo, ainda que corrupto, de Yanukovitch, serviu de mote para os levantamentos das províncias russófilas do oriente ucraniano, que agora constituem o maior risco de deflagração bélica na Europa (e no Mundo) depois da II Guerra Mundial.

A imagem pública da política como actividade corrupta e desonesta advém muito de se aceitar como natural esta duplicidade de comportamentos dos políticos. Quem tem da política uma visão meramente tacticista para atingir objectivos determinados, considera mesmo que só deste modo, camuflando as suas reais intenções, os políticos conseguirão cumprir os desígnios a que se propõem (!) Apostar na menoridade mental ou na falta de consciência política das pessoas pode revelar-se proveitoso no imediato: afinal sempre foi possível manter no engano algumas (por vezes mesmo muitas) pessoas durante algum tempo. Mas a História demonstra bem como a realidade e a maior consciência das pessoas (fartas de ser enganadas para servir propósitos alheios e por isso cada vez mais despertas), se encarregam de ultrapassar os cálculos de curto prazo e destruir os proveitos instantâneos de certos políticos. Por vezes de forma bem explosiva.  

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