Há qualquer coisa de
esquizofrénico no momento actual da política portuguesa e não é só o que se
vislumbra por detrás da célebre tirada daquele inefável parlamentar de que ‘as
pessoas estão pior, mas o País está muito melhor’! Com todos os indicadores a
cair (incluindo até o do desemprego, mas este a exigir uma explicação pouco cómoda
para o governo), não se percebe como é possível continuar a garantir que ‘o País
está melhor’. No entanto, é isso mesmo que os pressurosos apparatchik deste
regime que nos calhou em desgraça se apressam a afirmar, de forma matraqueada
mas bem ensaiada, sempre que convidados pela comunicação social a pronunciar-se
sobre o que quer que seja, pouco se importando com a vida real das pessoas. E o
certo é que, para seu grande contentamento e proveito, constantemente lhes é
dada essa oportunidade.
Na política, como em quase tudo o
resto, tem vindo a ganhar preponderância a capacidade de representação dos seus
respectivos actores. Assume-se mesmo que a política é a forma por excelência de
representar – afinal não é suposto os políticos representarem os cidadãos que os elegeram? – valorizando-se aqui o
significado cénico da palavra. Não
obstante a duplicidade semântica do termo ‘representar’, o sentido atribuído à ‘representação
política’ é o do mandato imperativo
que sujeita o mandatado ao contracto eleitoral
estabelecido com os seus mandantes. Perante
a violação de tal contracto, a lógica democrática imporia a sua revogação – a
qualquer momento e não apenas no final do ciclo eleitoral, como é a regra nas
democracias ocidentais. Talvez isso explique, pelo menos em parte (face à sua
permissiva impunidade), o crescente abandono dos valores que a ela se associavam
– altruísmo, solidariedade, honradez – em nome do pragmatismo imposto por uma realidade económica totalitária, levando
à ruptura com a realidade dos cidadãos
que era suposto os políticos… representarem! A nível interno como
internacional.
O final deste Verão, ainda no
rescaldo nebuloso do colapso do BES, tem sido exemplar deste ponto de vista.
A nível interno, a direita vangloria-se de, no 2º
rectificativo do exercício, os impostos não aumentarem. Ora, para além da
mentira descarada (mais uma, até o insuspeito Marques Mendes exibiu uma longa lista
de aumentos!), tenta esconder, numa desbragada acção de camuflagem em que tem
contado com o precioso apoio da comunicação social, os efeitos devastadores ainda
por apurar da implosão do BES. Na lógica, aliás, da mistificação montada em
torno da dívida (da responsabilidade do sistema bancário, tal como este
episódio veio confirmar, com estrondo, para quem ainda tinha dúvidas) e da ‘penitência’
imposta da austeridade (inútil) como ‘alternativa’ para a redimir. Para os
anais, pois, ficará certamente o paradigma de duplicidade – a
propaganda face à realidade – que constitui a política de mentira deste
governo da direita ultraliberal.
O PS, já se sabe, preocupado
com o ‘centro político’, privilegia um debate interno sobre personalidades. Em
lugar da preparação de uma consistente alternativa política de esquerda (de que
se assume como principal representante), prefere a gestão do poder actual. E
a disputa, deserta de ideias e de propostas, centrada apenas em técnicas de
charme eleitoral, opõe os que já ‘salivavam’ com a promessa à vista de uma
pasta ministerial (para além do próprio líder Seguro, atente-se na pose e na atitude
de alguns dos seus mais encarniçados indefectíveis: o redondo e agora mais
inflamado João Proença para a área social ou do trabalho, o indizível Brilhante
Dias para uma das áreas económicas…), à figura messiânica da sempre adiada ‘reserva Costa’ que decidiu (finalmente?)
irromper na discussão pelo apetecido pitéu (o ‘pote’, no dizer do outro).
A esquerda (PCP e BE, sobretudo),
ao invés, dir-se-ia confrontada com os efeitos partidários dos ‘excessos’ de
coerência ideológica e de firmeza de posições políticas que a caracterizam. Aqui
não se coloca o problema da duplicidade. Mas perante o crescente impasse social
e os novos desafios partidários (Livre, Manifesto, Alternativa Democrática…), assume
relevo inusitado o dilema sempre
presente na estratégia desta área política: até onde irão manter a posição de
‘simples’ contestação ao poder dominante sem assumir o ónus de o exercer,
escusando-se a servir, dado o actual contexto das forças políticas, de mero
adorno de ‘esquerda’ a políticas de direita – mesmo que lideradas por um
partido que se afirma de esquerda, o PS?
É a nível externo que os riscos desta duplicidade se mostram
mais ameaçadores. A política ocidental de implantação à bomba de verdadeiras
democracias (diziam…) – primeiro no Iraque (por Bush), depois, já com Obama, na
Líbia, na Síria… – deu lugar, para já, ao ameaçador estado jihadista da
República Islâmica e a um Estado falhado. Seja qual for a avaliação do ponto de
vista do Ocidente, os resultados não podiam ser mais catastróficos e os riscos
são imensos. Ainda que de um outro ponto de vista, a situação na Ucrânia é, ela
também, o resultado dessa duplicidade de critérios (onde pára o Kosovo?). O declarado incentivo do
Ocidente, liderado por essa aberração política que dá pelo nome de ‘Tea Party’
(mas com a conivência ou mesmo o apoio explícito, de Merkel e Obama – Kerry
passeou-se na praça Maidan em Kiev durante a contestação), à queda do governo
legítimo, ainda que corrupto, de Yanukovitch, serviu de mote para
os levantamentos das províncias russófilas do oriente ucraniano, que agora
constituem o maior risco de deflagração bélica na Europa (e no Mundo) depois da
II Guerra Mundial.
A imagem pública da política como
actividade corrupta e desonesta advém muito de se aceitar como natural esta
duplicidade de comportamentos dos políticos. Quem tem da política uma visão
meramente tacticista para atingir objectivos determinados, considera mesmo que
só deste modo, camuflando as suas reais intenções, os políticos conseguirão
cumprir os desígnios a que se propõem (!) Apostar na menoridade mental ou na
falta de consciência política das pessoas pode revelar-se proveitoso no
imediato: afinal sempre foi possível manter no engano algumas (por vezes mesmo muitas)
pessoas durante algum tempo. Mas a História demonstra bem como a realidade e a
maior consciência das pessoas (fartas de ser enganadas para servir propósitos
alheios e por isso cada vez mais despertas), se encarregam de ultrapassar os
cálculos de curto prazo e destruir os proveitos instantâneos de certos
políticos. Por vezes de forma bem explosiva.
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