quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Mercado ou democracia, o dilema não resolvido desta social-democracia exangue

Retomo o tema mais recorrente nestes comentários: o mercado face à democracia. Desta vez o mote é-me sugerido pela análise de Pacheco Pereira na SICN/Quadratura do Círculo às razões que levaram Portugal a subir 15 lugares no estranho e subjectivo ranking da produtividade (do Fórum Económico Mundial). Nota ele que um dos factores negativos que aí figura como condicionando a concretização dos negócios – e, por isso, impedindo uma subida ainda mais pronunciada – é aquilo que se designa por ‘instabilidade política’. Ora, num contexto de maioria absoluta, de um Parlamento dócil e servidor dos desígnios do Governo, de um Presidente inexistente em termos de intervenção política, este item não parece fazer qualquer sentido, a menos que se pretenda dizer que a instabilidade advém precisamente da incerteza própria da… democracia! É a democracia, afinal, a causa da instabilidade política.

Na percepção dos autores do índice, portanto, a subsistência de um quadro democrático introduz sempre alguma indefinição no comportamento futuro das políticas. Embora o passado colaborante do PS, provável alternante do actual poder, não permita vislumbrar riscos de maior na continuidade das famosas reformas estruturais tidas como nevrálgicas pelos mercados (nomeadamente nas áreas sociais e do trabalho) – o que é sintomático vindo precisamente de um partido dito de esquerda – o mais sugestivo aqui são mesmo as ilações a tirar sobre o papel que se pretende reservado à democracia no contexto do mercado.

Papel circunscrito à escolha de representantes decorativos sem capacidade de decisão, pois as essenciais ficam reduzidas a meras opções técnicas da exclusiva competência de especialistas. As opções técnicas substituem, definitivamente, as opções políticas! Resta apenas encontrar os agentes políticos que se prestem à farsa. E dar às normas técnicas a devida força constitucional por forma a ‘prevenir os abusos da democracia’! O autor desta proposta, Hayek, em amigável visita ao Chile de Pinochet (1981), afirmava preferir uma ditadura onde se aplicasse o liberalismo a uma democracia em que este estivesse ausente! Liberalismo, sim, mas apenas no domínio económico – entenda-se ‘mercado livre’ – já que a nível político e social reina, na maioria dos seus prosélitos, o mais retrógrado conservadorismo.
 
Na realidade nada disto é novo, a novidade é apenas a impunidade com que se manipulam e divulgam conceitos elaborados nessa base. Que seja o Fórum Mundial a fazê-lo ainda menos espanto poderá causar, mas a utilização generalizada deste tipo de conceitos como se tratasse de dados objectivos incontestáveis é deveras sintomático do ambiente político dominante. E que permite avaliar a dificuldade em se tentar qualquer mudança política ou social no ‘status quo’ actual. A blindagem ideológica (sob respeitável roupagem teórica e devidamente consolidada pelos media) que protege o actual poder absoluto da globalização financeira impede, desde logo, a alteração do modelo bancário instituído, não obstante o consenso cada vez mais enraizado de que se torna inevitável fazê-lo. Que é urgente actuar, conforme o BES acabou agora mesmo de o demonstrar.

Ao longo das últimas décadas e na base de um processo de liberalização financeira que culminou na globalização actual, ergueu-se e desenvolveu-se uma imensa rede de interesses, transversal a toda a sociedade – indo da economia à política, da banca aos serviços públicos, das funções de topo aos níveis intermédios…, – que agora surge como inabalável sustentáculo deste desconforme edifício, aparentemente imune a qualquer tentativa de transformação. Não obstante impor-se, até por razões de sobrevivência do próprio sistema, uma alteração profunda de um modelo baseado na especulação financeira (que consome cerca de 98% dos recursos a nível mundial, apenas 2% se destinam à economia real!) e a sua substituição por um outro mais próximo da realidade e das pessoas, não é crível que tal venha a ocorrer de forma natural e pacífica: a primeira e porventura principal dificuldade reside no bloqueio que, sob a permanente chantagem do caos e da bancarrota, os seus beneficiários (directos e indirectos, incluindo aqui o suporte mediático e político) oporão a qualquer reforma que tente pôr em causa as regalias e comodidades que o actual regime lhes proporciona. Seguramente nenhum deles estará disponível ou aceitará de livre vontade alterar o modelo que as garante.

De colapso em colapso, numa sucessão de ocorrências incontroláveis e de rumo imprevisto, é mesmo o enorme imbróglio financeiro em que se transformou o sistema a nível global, que realmente ameaça, sob pretextos vários (conflitos regionais, convulsões sociais, movimentos autonomistas, fundamentalismos…), precipitar o mundo, mais do que aparenta, numa hecatombe trágica. Sem receio das palavras ou de fantasiadas visões catastrofistas. E impossível de ocultar sob a farsa da personalização das culpas ou do reforço da supervisão.

É neste contexto que ocorrem as bizarras eleições no PS a candidato a 1º Ministro! O espectáculo deprimente oferecido pelos dois ‘candidatos a candidato’ – o ainda actual líder teimando num exercício de mal disfarçada acidez pela repentina interrupção do que já se adivinhava como uma segura ascensão ao poder (‘ora bolas, mesmo agora que já estava tão perto!’); o outro, eterno émulo ao lugar sem realmente o assumir, relutante em não apresentar qualquer programa ou projectos, expectante do que o futuro lhe reserva (por falta de alternativa real? Por mero tacticismo político? Ou por ambas?), confiante apenas na sua mais luzidia imagem – dá bem a dimensão deste PS. É bem o reflexo desta social-democracia em fim de turno, mas de bons serviços ao capital. Exangue e sem alternativas (numa altura em que mais necessárias elas são!), sem capacidade para afirmar a democracia perante o mercado (e a espessa malha de interesses tecida à sua volta), ameaça finar-se sem glória, apenas com o proveito de ter cumprido a pouco edificante função histórica de aguentar um sistema que há muito, não fora o papel serviçal a que se prestou, teria desaparecido. Por este andar, as exéquias virão aí, não tarda nada!

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