Os últimos tempos têm sido particularmente agitados pelos
‘conflitos’ que emergiram em duas das mais tradicionais famílias lusas: uma da
área dos negócios, o BES, a outra do campo da política, o PS. Em ambos assumem
protagonismo figuras proeminentes dos dois universos. Em resumo e de forma algo
simplista, da parte do BES, Ricciardi enfrentou o primo Ricardo (até agora o
intocável líder do Grupo) e o negócio de família desfez-se; do lado do PS, o eterno
putativo líder Costa decidiu (finalmente!) desafiar o precário actual líder
Seguro e o partido ameaça fraccionar-se.
O desenrolar das peripécias mais
ou menos rocambolescas (no caso do PS), ou invariavelmente escabrosas (no caso
do BES), têm feito as parangonas dos jornais e alimentado o comentário ávido de
tricas nas televisões, mas está longe de constituir o essencial destas duas
exemplares histórias domésticas. Tratou-se, em qualquer dos casos, de
desenlaces há muito anunciados. No que respeita ao BES, não obstante toda a
imprensa se afadigar agora em desvendar os meandros dos negócios sórdidos da
família (e dos correligionários que os servem, servindo-se), eles não se
afastam muito dos comportamentos adoptados pelos outros intervenientes no
negócio bancário e financeiro a nível global. Há muito era sabido que toda a
engenhosa criatividade – sintomaticamente designada por ‘engenharia
financeira’! – a que os bancos se tinham entregue nas últimas décadas só podia
ter este desfecho. Todos eles, aliás, se viram ‘obrigados’ a praticá-la, em
nome de um realismo que, a não ser adoptado, os marginalizaria e eliminaria
deste feroz jogo competitivo.
Mas depois do que aconteceu com o
BPN, BPP, BCP, Banif, agora o BES (e, se houver rigor, todos os restantes);
depois dos episódios em torno do Lehmans, AEG, Citigroup, Lloyds, Royal
scottish, Barclays, BNP Paribas, UBS, Deutsche e tantos outros; do que se sabe
da actuação da Goldman Sachs, do JPMorgan ou das agências de rating,...
estranho é que ainda se insista na tese de que tudo teve origem no
comportamento desviante de alguns gestores gananciosos e mal formados (!), de
que se tratou ‘apenas’ de falhas de regulação, mais ou menos graves e extensas
conforme os casos e os lugares. Na realidade o que aconteceu não pode reduzir-se
a um mero desvio, antes se enquadra num padrão sistémico, inelutável por
natureza, que se insere na lógica dos ‘mercados livres’ e visa
responder aos desafios da concorrência.
Essa lógica determina que as
barreiras, por ínfimas que sejam, estabelecidas por uma qualquer regulação ao
curso normal do mercado (em nome de uma sociedade mais civilizada – ou menos
‘bárbara’), tenderão a ser ultrapassadas e quebradas, pois os agentes dos
‘mercados livres’ tudo farão, em nome da sacrossanta ‘liberdade do comércio’ (e
da sobrevivência!), para as afastar, as manipular, as desvirtuar, as corromper.
Mesmo atendo-nos apenas nos estritos limites legais (excluindo, pois, práticas
‘à margem da lei’ como a usual manipulação das condições de mercado,
nomeadamente concertação de taxas, como ocorreu com a LIBOR), bastará referir o
caso das legais ‘off-shores’, a que todos eles recorrem – ainda que bem
protegidos por impenetráveis segredos bancários. O que, desde logo, é bem
sintomático, pois permite-se (ou tolera-se) a existência deste tipo de
expedientes, mas lança-se o anátema ou até se criminalizam, quantos a ele
recorrem!
Já quanto à disputa que, por
estes dias, opõe Costa a Seguro pela liderança do PS, mais que os amuos do
último ou a análise ao carácter de ambos (ainda que relevante), importa
conhe- cer e avaliar os respectivos programas políticos. E se, até agora, o saldo
nesse domínio é deveras confrangedor (se bem que esperado), sem ideias ou
propostas, a própria dinâmica que resulta do confronto pode bem forçar o debate
por fazer sobre o papel das correntes social-democratas e socialistas
na actualidade. Porque importante mesmo é saber se a social-democracia ainda
tem alguma coisa de diferente a oferecer às sociedades capitalistas
globalizadas do Séc. XXI que não seja uma variante adocicada do neoliberalismo,
se ainda é possível vir a constituir uma real alternativa política ao
avassalador domínio tecnocrata da ideologia dos ‘mercados livres’, capaz de
inverter a lógica em que todos os ‘Espírito Santos’ e demais financistas têm
baseado o seu poder ancestral.
Capaz, em suma, de liderar a urgente alteração radical das relações
do poder político, traduzida, nomeadamente, na disposição para enfrentar (e
controlar) o poder económico e libertar o País da actual sujeição externa – que
passa, antes de mais, pela reestruturação da dívida – base da
soberania e autonomia indispensáveis à prática da democracia e garante do Estado de direito. Mas também na atitude perante os cidadãos e na forma de
utilização do aparelho de Estado (normalmente posto ao serviço das respectivas
clientelas partidárias). Veremos então se este PS se deixou enredar e subjugar
pela dominante ideologia neoliberal dos ‘mercados livres’ a ponto de – como é
expectável – a alternativa que corporiza se poder tornar irrelevante para a decisão política essencial.
Desfeito o negócio familiar dos
‘Espírito Santo’ na banca – apenas mais um episódio de uma lista
interminável! –, resta então apurar, a começar por este PS desavindo, até onde
resistirá a ideia e a prática de uma social-democracia europeia autónoma – e
não apenas mais uma variante neoliberal! – perante a lógica avassaladora
dos ‘mercados livres'.
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