Um dos aspectos mais cuidadosamente trabalhados pela
metódica operação política de reimplantação do credo liberal na economia foi o
da propaganda. Com a constituição da Societé Mont Pellerin, nos
já longínquos idos 40, iniciou-se um processo de meticulosa arregimentação dos
mais prosélitos fiéis do absolutismo do ‘mercado livre’, sobretudo no meio
académico e no jornalismo, na expectativa de poderem actuar logo que a
oportunidade surgisse – sempre através do ‘choque’ produzido
seja por uma ditadura militar (como no Chile), seja, como agora, pela ditadura
das dívidas (bem manipuladas pelas agências de rating), ou por
qualquer outra crise grave (hiperinflação, terrorismo,...). Perante um
certo descrédito do conservadorismo e a maior aceitação pública das ideias
ditas progressistas, importava inverter o sentido das palavras, apropriar-se
delas, pô-las ao serviço da difusão das ideias liberais. Garantir o êxito
impunha não descurar nenhum pormenor, por ínfimo que pareça.
Assim, na lenta e persistente preparação de todos os
aspectos envolvendo tal operação, não pode considerar-se menor a tarefa de
transmutação da terminologia política mais arreigada na opinião pública – e,
por arrasto, dos conceitos sociais a ela subjacentes. A começar pelo termo
‘revolução’, agora apenas completo quando se disser ‘revolução liberal’. Não
admira, pois, que ‘reaccionário’ passe então a qualificar alguém que se oponha
às ‘reformas’ adoptadas no âmbito da... ‘revolução liberal’! O anátema de
‘retrógrado’ e ‘conservador’ abate-se sobre todos os que se não identificam com
a nova ordem liberal, liberal torna-se sinónimo de liberdade, a liberdade
exige ‘liberdade económica’, e esta é inseparável do seu santuário, o ‘mercado
livre’. Aliás, a nota mais distintiva (e bem sintomática) destes espécimes
é mesmo serem liberais na economia, mas o mais conservadores nos
costumes.
Toda esta fraseologia encontra sequência lógica na nova
designação dada aos capitalistas, agora exaltantemente intitulados
‘empreendedores’, dotados de ‘espírito de iniciativa’, ‘ambiciosos’, cultivando
o ‘gosto pelo risco’. O ‘lucro’ passa a ‘criação de valor’, o ‘salário’
transforma-se em ‘custo do trabalho’, os ‘despedimentos’ são o resultado de
‘planos de saneamento das empresas’, em última análise, de ‘salvação de
empregos’! Pior que tudo e já sem qualquer pudor nem fingimento, a ‘segurança
social’ vai-se gradualmente transmutando em... ‘assistência social’!
Mas a grande transformação, essa vai-se processando ao
nível dos valores e da cultura: apenas importa o sucesso sem
olhar aos meios. E se logo à cabeça surge o primado atribuído ao indivíduo
sobre a colectividade – que arrasta o da competição sobre a colaboração
– não pode deixar de se referir também o da ambição sobre a abnegação, a
arrogância sobre a modéstia, o egoísmo sobre o altruísmo, a ganância sobre a
solidariedade, a habilidade manhosa sobre a competência e o mérito, o logro
sobre a lealdade, o cinismo sobre a verdade... No final vingará a impunidade
sobre a justiça. É todo o ambiente em que interagem as relações sociais que é
objecto de intenso bombardeamento mediático no sentido da sua transformação –
dizem que no sentido do empreendedorismo, da livre iniciativa, da competição
sem limites... – a base em que se pretende assentar a construção desse Admirável
Mundo Novo!
O resultado desta inversão de valores, desta
subversão de conceitos, observa-se a cada passo. Recentemente foram divulgados
dados preliminares de um vasto estudo do CES/Centro de Estudos Sociais (da
Univ. de Coimbra) sobre ética e fraude académica em meio universitário,
revelando que os alunos mais propensos a copiar são masculinos, do
ensino privado, têm médias mais baixas, pais com maior grau de escolaridade e
de rendimentos mais elevados. Na lógica dos dados apurados, o comentário
televisivo de um dos autores identificou uma cultura de tolerância à fraude
reveladora dos padrões
éticos adoptados na conduta profissional de algumas das nossas elites
(de onde tais alunos maioritariamente provêm), destacando uma dupla vertente:
recurso à fraude e à corrupção para se atingirem objectivos, incompetência
e fraco nível de exigência nos seus desempenhos. Nenhuma novidade,
aliás, se atentarmos nos indicadores comparados da produtividade face ao
esforço aplicado, tendo em conta os valores dominantes que nos vão sendo
impostos – e a pouco e pouco absorvidos.
Todo este edifício propagandístico converge para a cúpula que se resume no famoso TINA de Thatcher. ‘Não há alternativa’ – síntese
ideológica de toda a propaganda liberal – pretende ser um nó cego na vida das
pessoas, uma determinação política anti-democrática a amarrar a realidade, a
condicionar a sua evolução. Ao serviço da versão mais radical de um modelo
económico que, ‘entregue’ ao arbítrio de forças cegas, está a exercer uma
insuportável pressão sobre os recursos limitados do planeta. Até onde (ou
quando), porém, a realidade se deixará manietar por essa utopia liberal que –
já poucas dúvidas subsistem – conduzirá ao inevitável esgotamento desses recursos
mais depressa do que se imagina? Até onde, pois, a propaganda resistirá (ou se
irá impor) à realidade?
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