terça-feira, 14 de janeiro de 2014

A ‘Crise actual’ e as Crises deste nosso modo de vida - II

A persistência da Crise – para além da ‘crise financeira’

Sem contestação, vai-se banalizando a ideia, expressa em debates ou simples comentários, de que ‘só as empresas criam riqueza’. O uso de tal afirmação surge, invariavelmente, quando se pretende contrariar o papel do Estado na economia e na sociedade em geral. O contexto institucional serve bem o objectivo político: confinar a criação da riqueza ao confronto entre as instituiçõesEstado’ e ‘Empresa’, reduzir o trabalho a mera categoria instrumental! Em última análise relembra, a quem o tenha esquecido, a ‘ordem natural das coisas’: quem manda é o capital, o trabalho deve subordinar-se à organização empresa, o trabalhador vive na dependência do empresário! É, pois, toda uma filosofia de actuação política, um completo programa social que se encontra contido em tal expressão.

Trata-se, sem dúvida, de uma construção ideológica com claros intuitos políticos, que subtilmente se vai instilando na mente das pessoas e que só na forma consegue traduzir a realidade. Ora, por muito que isso custe aos fundamentalistas do mercado, o único factor que cria riqueza é mesmo o trabalho, seja ele organizado em empresas (sob tutela pública ou privada) ou executado fora delas ou mesmo prolongado no capital, sob a forma de máquinas, edifícios, saber e tecnologia,... O que não impede de tal construção mental – elaborada consciente ou inconscientemente – singrar à direita e à esquerda, dita e redita como verdade incontestável ou dogma infalível. Enfim, de produzir os efeitos pretendidos. De colaborar no propósito essencial prosseguido com estas políticas, a desvalorização do trabalho!

É este o contexto político da austeridade. E depois de destruírem a vida a meio milhão de pessoas (sobre os destroços de outro meio milhão já existente), de expulsarem da sua terra mais de 300 mil (a maioria jovens qualificados), de destruírem um País, os fautores da desgraça e próceres do programa político que a tal conduziu – o famigerado memorando da troika! – iniciam agora um estranho ritual de entoação de loas e aplausos aos sinais positivos emitidos pelos mercados, a quem obedecem e reverentemente se curvam. A partir de agora e se ainda dúvidas restassem, quem manda são os ditos mercados, pois até aquele arremedo de democracia realmente existente foi posto em causa e, pelo menos por enquanto, metido na gaveta (ombreando ao lado de outra ‘velharia histórica’ já antes lá colocada, o socialismo).

Com a imposição dos Tratados de Mastricht, Nice e Lisboa aos parceiros da União Europeia, a locomotiva dos mercados tomou conta dos comandos de uma Europa sem política, sem capacidade para traçar outro rumo que não seja o ditado pelos interesses da finança mundial, regionalmente liderados pelas conveniências estratégicas de uma Alemanha cada vez mais hegemónica. Mas quando se entrega o comando da vida em sociedade aos ditos automatismos do mercado, sem freios e poucos entraves (talvez um simulacro no Parlamento Europeu, já que os Nacionais estão constitucionalmente submetidos, ‘de jure’ ou ‘de facto’, aos famosos condicionalismos dos Tratados), o risco é mesmo a locomotiva esbarrar, descontrolada, nos históricos conflitos regionais potenciados pela competição inerente ao sistema. Conhecendo-se a actual intensidade competitiva dos mercados a nível global, estará então a nossa sobrevivência dependente da intensidade do(s) próximo(s) conflito(s)? A retirada do Estado e da política do caminho do mercado representa, é certo, o regresso à pureza dos princípios – a doutrina da ‘mão invisível’ – mas antecipa, de algum modo, os limites e o termo de um sistema baseado na competição, tanto mais eficaz quanto menos regras ou barreiras encontrar pela frente.

Por muito encorajadores, pois, que se vislumbrem e destaquem os sinais ou até mesmo se venham a revelar positivos os resultados económicos desta austeridade enviesada (os propósitos proclamados escondem os realmente prosseguidos), a evolução do País e o seu futuro imediato, pelo menos o das suas maiorias sociais, pouco ou nada beneficiarão com isso. As políticas de austeridade são para manter, hoje condicionadas por dois factores estruturais decisivos de impossível remoção ou alteração no curto prazo: a nível interno, uma estrutura produtiva nacional desmantelada a troco dos subsídios da Europa (e, sabe-se hoje, por troca com o reforço da alemã); a nível externo, toda a arquitectura institucional imposta pela UE/Alemanha, que, na prática, se revela de valor equivalente ao constitucional (neste sentido, pouco significado tem já a polémica em torno da constitucionalização de certas normas dos Tratados).

É assim que, perante o nível insustentável da dívida pública actual, a ideia – inicialmente excomungada – de que só uma reestruturação dessa dívida poderá levar à saída da crise, surge agora consensual. A partir daqui, porém, aprofundam-se as divergências, com os fiéis paladinos da austeridade nas suas várias versões (a dura e a moderada), ainda na ardente expectativa de um ‘milagre’ por via da alteração da estrutura institucional da UE, a falarem em reescalonamento de prazos, na redução de juros e, os mais avisados, até mesmo de corte de montantes! E enquanto tal ‘milagre’ não chega (bem podem esperar...), convém recordar-lhes, então, que só isso também não chega para se sair da crise financeira a que fomos submetidos – e que domina o quotidiano das pessoas, em desfavor de uma devida maior atenção aos sinais que traduzem e exigem a mudança dos actuais paradigmas, a nível económico, ambiental, social,...

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