A persistência da Crise – para além da ‘crise
financeira’
Sem contestação, vai-se banalizando a ideia, expressa em
debates ou simples comentários, de que ‘só as empresas criam riqueza’. O
uso de tal afirmação surge, invariavelmente, quando se pretende contrariar o
papel do Estado na economia e na sociedade em geral. O contexto institucional
serve bem o objectivo político: confinar a criação da riqueza ao confronto
entre as instituições ‘Estado’ e ‘Empresa’, reduzir o trabalho
a mera categoria instrumental! Em última análise relembra, a quem o tenha
esquecido, a ‘ordem natural das coisas’: quem manda é o capital,
o trabalho deve subordinar-se à organização empresa, o
trabalhador vive na dependência do empresário! É, pois, toda uma
filosofia de actuação política, um completo programa social que se encontra
contido em tal expressão.
Trata-se, sem dúvida, de uma construção ideológica com
claros intuitos políticos, que subtilmente se vai instilando na mente das
pessoas e que só na forma consegue traduzir a realidade. Ora, por muito que
isso custe aos fundamentalistas do mercado, o único factor que cria riqueza é
mesmo o trabalho, seja ele organizado em empresas (sob tutela pública ou
privada) ou executado fora delas ou mesmo prolongado no capital,
sob a forma de máquinas, edifícios, saber e tecnologia,... O que não impede de
tal construção mental – elaborada consciente ou inconscientemente – singrar à
direita e à esquerda, dita e redita como verdade incontestável ou dogma
infalível. Enfim, de produzir os efeitos pretendidos. De colaborar no propósito
essencial prosseguido com estas políticas, a desvalorização do trabalho!
É este o contexto político da austeridade. E
depois de destruírem a vida a meio milhão de pessoas (sobre os destroços de
outro meio milhão já existente), de expulsarem da sua terra mais de 300 mil (a
maioria jovens qualificados), de destruírem um País, os fautores da desgraça e
próceres do programa político que a tal conduziu – o famigerado memorando da
troika! – iniciam agora um estranho ritual de entoação de loas e aplausos aos
sinais positivos emitidos pelos mercados, a quem obedecem e reverentemente se
curvam. A partir de agora e se ainda dúvidas restassem, quem manda são os ditos
mercados, pois até aquele arremedo de democracia realmente existente foi
posto em causa e, pelo menos por enquanto, metido na gaveta (ombreando ao lado
de outra ‘velharia histórica’ já antes lá colocada, o socialismo).
Com a imposição dos Tratados de Mastricht, Nice e Lisboa
aos parceiros da União Europeia, a locomotiva dos mercados tomou conta
dos comandos de uma Europa sem política, sem capacidade para traçar outro rumo
que não seja o ditado pelos interesses da finança mundial, regionalmente
liderados pelas conveniências estratégicas de uma Alemanha cada vez mais
hegemónica. Mas quando se entrega o comando da vida em sociedade aos ditos
automatismos do mercado, sem freios e poucos entraves (talvez um simulacro no
Parlamento Europeu, já que os Nacionais estão constitucionalmente submetidos,
‘de jure’ ou ‘de facto’, aos famosos condicionalismos dos Tratados), o risco é
mesmo a locomotiva esbarrar, descontrolada, nos históricos conflitos regionais
potenciados pela competição inerente ao sistema. Conhecendo-se a actual intensidade
competitiva dos mercados a nível global, estará então a nossa
sobrevivência dependente da intensidade do(s) próximo(s) conflito(s)? A
retirada do Estado e da política do caminho do mercado representa, é certo, o
regresso à pureza dos princípios – a doutrina da ‘mão invisível’ – mas
antecipa, de algum modo, os limites e o termo de um sistema baseado na
competição, tanto mais eficaz quanto menos regras ou barreiras encontrar pela
frente.
Por muito encorajadores, pois, que se vislumbrem
e destaquem os sinais ou até mesmo se venham a revelar positivos os resultados
económicos desta austeridade enviesada (os propósitos proclamados
escondem os realmente prosseguidos), a evolução do País e o seu futuro
imediato, pelo menos o das suas maiorias sociais, pouco ou nada beneficiarão
com isso. As políticas de austeridade são para manter, hoje condicionadas por dois factores
estruturais decisivos de impossível remoção ou alteração no curto prazo: a nível
interno, uma estrutura produtiva nacional desmantelada a troco dos
subsídios da Europa (e, sabe-se hoje, por troca com o reforço da alemã); a nível
externo, toda a arquitectura institucional imposta pela UE/Alemanha, que, na
prática, se revela de valor equivalente ao constitucional (neste sentido,
pouco significado tem já a polémica em torno da constitucionalização de certas
normas dos Tratados).
É assim que, perante o nível insustentável da dívida pública actual, a
ideia – inicialmente excomungada – de que só uma reestruturação dessa dívida
poderá levar à saída da crise, surge agora consensual. A partir daqui, porém,
aprofundam-se as divergências, com os fiéis paladinos da austeridade nas suas
várias versões (a dura e a moderada), ainda na ardente expectativa de um
‘milagre’ por via da alteração da estrutura institucional da UE, a falarem em
reescalonamento de prazos, na redução de juros e, os mais avisados, até mesmo
de corte de montantes! E enquanto tal ‘milagre’ não chega (bem podem
esperar...), convém recordar-lhes, então, que só isso também não chega
para se sair da crise financeira a que fomos submetidos – e que domina o
quotidiano das pessoas, em desfavor de uma devida maior atenção aos sinais que
traduzem e exigem a mudança dos actuais paradigmas, a nível económico,
ambiental, social,...
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