sábado, 9 de novembro de 2013

O Estado dos mercados

Peça a peça, vai-se completando o ‘puzzle’ da trama para onde o País (e o Mundo) foi arrastado. Sem necessidade de recuar às origens do sistema, nem recorrer a teorias mais abrangentes e sistematizadas, olhando apenas o desenrolar dos acontecimentos que constróem o nosso quotidiano, a pouco e pouco vai-se tornando clara a actual política de transferência de rendimentos para o capital, seja pela via brutal da desvalorização do trabalho (redução salarial, precarização das relações laborais,...), seja através da gradual destruição do Estado Social (a nível da saúde, educação, prestações sociais,...), tudo em nome da aparente obsessão ideológica de um proclamado Estado mínimo – em prol, dizem, da ‘libertação da sociedade civil (e agora até acrescentam já) da tentação de um Estado totalitário’!

As políticas de austeridade que, um pouco por toda a parte e sob formas diferentes, têm vindo a ser (inutilmente, registe-se!) postas em prática para, de acordo com os seus promotores, resolverem a crise das dívidas, constituem apenas a última peça de uma longa sequência de factos económicos – a par das decisões políticas que, em boa medida, os explicam! As dívidas passam a ser incontroláveis após a crise financeira mundial que se instala na sequência do rebentamento da bolha imobiliária na maior economia do Mundo. A ‘bolha’, essa, é impulsionada pela especulação financeira, por sua vez o resultado da liberalização e desregulação económica. Correndo o risco de algum esquematismo simplista, eis, pois, a sequência cronológica essencial da causa próxima do actual descalabro social: desregulação económica, especulação financeira, bolhas imobiliárias, crise bancária, disparo das dívidas, ajustamento pela via da austeridade. O ciclo irá decerto repetir-se, mas agora a partir de uma já anunciada nova crise bancária gerada pelo endividamento dos particulares por força da violenta austeridade a que foram submetidos. O fatalismo das soluções catastróficas parece inevitável!

Acresce, no que respeita à dívida pública nacional, o contributo específico do processo de integração do País na UE, traduzido, desde logo, na armadilha dos subsídios europeus (concedidos a troco de contrapartidas: ao desmantelamento de sectores produtivos vitais, soma-se a exigência da componente financeira interna, conjugada com as baixas taxas de juro no crédito externo), por último, na adesão ao disfuncional Euro (alienação da política monetária própria, sem os correspondentes mecanismos de compensação comunitários). E, ainda, a atávica (mas não específica) componente nacional da corrupção na base do conúbio entre os interesses financeiros, imobiliários e políticos!

Esta é, contudo, apenas a face visível e mais recente deste caviloso enredo. Emerso nele, porém, vislumbra-se uma meticulosa política que, sob a capa dessa anunciada ‘libertação’, tem vindo a permitir a constituição de um poder absoluto sem rosto nem freio, que absorve e domina por completo a vida das pessoas, que lhes subjuga o corpo e a mente. O Estado construído na base do Contrato Social aparecia, então, como a última – porventura a única – barreira com capacidade para evitar essa subjugação total dos indivíduos aos ditames do poder dos caprichosos mercados: limitando-lhes os excessos, impondo-lhes até uma certa redistribuição social dos rendimentos. Desmantelado o Estado Social é ele próprio subjugado e posto ao serviço exclusivo desses mesmos mercados que, libertos de quaisquer entraves, o manipulam a seu bel-prazer.

Foi o quotidiano desta crise que se encarregou de mostrar a falácia da tão propalada e encomiástica ‘liberdade dos mercados’. Apresentada como a poção mágica para uma gestão eficiente da economia, não passa, afinal, de delirante exaltação ideológica sem aderência à realidade. A insistência na fórmula que conduziu ao desastre, se à luz da lógica racional parece raiar o absurdo, permite clarificar os seus verdadeiros propósitos: continuar a garantir aos que os dirigem (liderados pela Banca) o maior controle dos ganhos de produtividade – o que exige a utilização do aparelho de Estado para tal fim. Por trás da intensa barragem de propaganda emergem, pois, os tão famigerados mercados transformados em sujeito e objecto de manipulações obscuras, ao sabor e em proveito único de interesses particulares.

É bom recordar que a actual fase dessa pretensa liberalização da sociedade civil – pretexto para o arranque, promovido por Reagan e Thatcher, do processo de desregulação económica – teve origem na luta social gerada em torno da repartição dos ganhos de produtividade que a ‘revolução informática’ acelerou de forma acentuada. Os resultados a nível económico (claramente aquém dos do período precedente, por isso designado de ‘os 30 gloriosos anos’) e sobretudo social (aprofundamento das desigualdades,...), parecem desembocar num novo impasse ou caminhar para o desastre. Nem mesmo a evidência de que o aumento das desigualdades, para além do risco de fractura da coesão social, agrava a ineficiência económica, parece demover os ditos mercados da sua eterna cruzada pela acumulação crescente de capital. Mesmo que isso implique a ruína social a longo prazo. A sua própria ruína, afinal!

É este processo que precisa ser estancado. Que exige ser invertido. Será, pois, no retorno à luta pela repartição dos benefícios da produtividade que deverão construir-se as alternativas à crise e à austeridade imposta pela actual política neo-liberal – tema, de resto, já bastas vezes aqui trazido. Sobretudo através da redução do tempo de trabalho, ao arrepio, é certo, das actuais tendências dominantes, à custa, como é devido, da remuneração do capital. Face às enormes e crescentes  capacidades produtivas actuais, esta é a única via possível para combater com eficácia o desemprego e reduzir as desigualdades. Ainda que o ambiente a nível global se apresente francamente adverso e os resultados se afigurem longínquos e de difícil alcance. O que exige uma demarcação clara da organização social baseada no domínio dos mercados e no Estado por eles manipulado.

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