Já não restam dúvidas: o
principal efeito da crise actual, é a destruição das democracias. De
formas diferentes, é certo, conforme os lugares e as suas circunstâncias. Mas o
que se pode já concluir é que, a pretexto da luta contra a crise financeira,
todo o edifício social construído sobretudo no pós-guerra (II Guerra Mundial,
entenda-se), tem vindo a ser desmantelado e o poder dos cidadãos livres
transferido para o arbítrio do denominado mercado livre – entidade
abstracta sob que se acoita o poder financeiro mundial. De forma insidiosa,
lenta mas inexorável, vão-se reduzindo, desmantelando, eliminando direitos e
benefícios de inestimável valor civilizacional para a maioria dos cidadãos, por
troca com o reforço de poder concentrado numa cada vez mais pequena minoria.
Primeiro os direitos sociais (reduzidos a sistema assistencial),
depois os económicos (esbulho de rendimentos do trabalho), restarão
talvez os políticos confinados a um crescente destituído formalismo. Principal vítima deste processo hediondo e regressivo (a lógica da
ideologia que o suporta conduz à lei da selva): as classes médias - as mesmas que durante décadas suportaram o sistema que agora as descarta!
Esta monstruosa transferência de
riqueza da maioria indefesa para a escassa minoria de poderosos é feita, dizem,
como única alternativa (?) a honrarem-se os compromissos da dívida externa.
Cândido propósito ou cínico pretexto, pois a mesma honrada disposição não os
assiste quando se trata de respeitar os compromissos assumidos com os seus
concidadãos, seja em pensões seja em salários. Sendo esta discrepância de
comportamentos a opção principal de uma política executada pelo Estado
democrático, o Governo que conjunturalmente detém o poder, só pode arguir
legitimidade para a levar a cabo se para tal tivesse obtido mandato expresso do
povo soberano que representa. Não o tendo feito, coloca-se até em situação de
duvidosa legalidade, tanto mais que à violação grosseira do pacto eleitoral,
acresce a reiterada quebra do pacto constitucional.
A operação nacional de
desmantelamento de direitos e destruição da democracia insere-se num movimento
mais vasto, à escala global, que visa submeter o poder político ao poder
económico, sob pretexto de, a coberto de uma pretensa neutralidade dos
‘mercados livres’, assim se garantirem decisões isentas e maior eficiência na
gestão dos recursos. O objectivo real, porém, foi, num primeiro momento, drenar
recursos do trabalho para recuperar as instituições financeiras abaladas pelo
rebentamento da bolha especulativa em 2008. Mas, face à débil reacção das
populações ao descarado esbulho, bem cedo o poder percebeu que podia dar
continuidade a tal política sem entraves de monta. Com tudo o que aconteceu
desde 2008, não sei o que mais surpreende, se a desfaçatez e
impunidade com que os seus promotores aparecem a defender e a pôr em prática as
mesmas receitas que conduziram à crise financeira, traduzida numa austeridade inútil, se a relativa passividade
dos que lhes sofrem os efeitos e à custa de quem tem sido possível manter as
instituições financeiras a funcionar, não obstante os focos de contestação que
tais medidas têm suscitado, um pouco por toda a parte.
A clique que detém o poder
mundial – constituída por empresas financeiras, agências de rating,
académicos modelados, políticos sem escrúpulos – e a sua extensão interna de
colaboracionistas têm vindo a conduzir o mundo para um colapso cada vez mais
consumado, sem se importarem com a destruição dos valores civilizacionais mais
arreigados, desde que isso sirva os seus interesses imediatos. Aliás, a total
impunidade do poder financeiro reflecte-se, hoje, na perda da sua tradicional
discrição no relacionamento com a sociedade – outros se encarregam do
trabalho político e ideológico de garantir o seu suporte social! –
tomando partido público, sem pudor, em diversas arengas políticas. A suprema
ironia – e até vexame para tais ‘suportes’! – surge da boca de um cotado
banqueiro, ao sugerir a suspensão de pagamentos (ainda que temporária) às PPPs (!!!), como alternativa ao
possível chumbo constitucional à ‘austeridade de sempre sobre os do costume’.
Não admira, pois, o espanto
suscitado nos meios ‘bem pensantes’ pelo epíteto com que Mário Soares resolveu
agraciar os governantes do País, considerando-os delinquentes,
susceptíveis de ser julgados no futuro por actos de traição. Tal como poderá
vir a acontecer com as instâncias internacionais que tutelam esta política
agiota de esbulho de recursos e humilhação nacional. De forma mais subtil Jorge
Sampaio apela a um ‘assomo patriótico’ na defesa das instituições
democráticas nacionais. Mas cada vez há menos espaço para subtilezas, sobretudo
quando se percebe que tais delinquentes lideram uma violenta forma de terrorismo
de Estado que, no final, terá como efeito a destruição da democracia.
Os actos praticados por esta corja de gente sem escrúpulos virão a ser
julgados e, até, devidamente punidos. Mas espera-se que o não sejam apenas
através do inclemente mas longínquo juízo da História. A destruição inútil de
incontáveis vidas humanas (além de recursos colossais...) merece outro desagravo.
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