Não obstante todo o esforço
mediático em contrário, a opinião pública tem vindo a demonstrar convicções
pouco tranquilizadoras para os poderes dominantes. Sabe-se, hoje (enfim, sempre
se soube), que a versão oficial da história iniciada com o ‘viver acima das
possibilidades’ – e da consequente contracção de uma suposta ‘dívida
colectiva’ (curioso que, quando se apurou ser esta sobretudo privada,
deixou de falar-se em ‘dívidas soberanas’ – todas passaram a públicas!)
e da exploração enviesada do princípio de que ‘as dívidas são para pagar’
(arrastando políticas de austeridade que conduzam à ‘redução do Estado
Social à medida das nossas capacidades’) – era uma 'história' muito mal contada. A génese e
evolução de tudo o que aconteceu para aqui chegarmos, afinal foi bem diferente
da ‘narrativa’ neoliberal que o aparelho mediático construiu na defesa das
políticas que suportam o poder financeiro global: os contribuintes (enquanto
tais), agora chamados a cobrir os prejuízos, pouco ou nada tiveram a ver com a
formação (e subsequente estouro) da ‘bolha’ especulativa habilmente camuflada
pela engenharia financeira dos ‘derivados’, que a completa desregulação dos
mercados acentuou.
À convicção pública, cada vez
mais reforçada, de que a origem e a responsabilidade da crise actual se deve
acima de tudo à especulação financeira em conúbio com o poder político dos
Estados, associa-se, pois, uma outra, não menos firme, de que os custos da
mesma estão a ser suportados por quem pouco ou nada para ela contribuiu – a
generalidade dos contribuintes, em especial os mais indefesos. Eis, então, o primeiro
paradoxo gerado entre duas alargadas convicções: quem está a pagar
a crise não é quem a provocou. Trata-se, como é óbvio, de um paradoxo
de natureza ‘apenas’ moral, de um facto eticamente reprovável, que só a
História terá capacidade de reconhecer a seu tempo. Para já o domínio económico
e político, apoiado numa bem oleada teia mediática, impõe que a conta dos
desvarios provocados por uns poucos (ainda que no desenvolvimento da lógica do
sistema) seja paga pela generalidade dos cidadãos.
Este não é, contudo, o único
episódio do gigantesco processo de extorsão e transferência de riqueza em
benefício do sector financeiro que se encontra em curso, bem longe disso, mas é
seguramente a base em que todos os outros se movimentam. Alguns são tão
evidentes e escandalosos que suscitam mesmo o reparo e a contestação dos
próprios apaniguados. Como o que recentemente envolveu Alberto João Jardim,
normalmente mais invocado por comportamentos histriónicos ou de demagogia
política, mas desta vez a propósito da decisão do ‘seu’ Governo (PSD/CDS) de
aumentar o horário de trabalho na função pública das actuais 35 para as 40
horas semanais. Com efeito, dirá ele, se a troika sustenta que há pessoas a mais
a trabalhar no Estado, prolongar o tempo de trabalho das que lá estão agrava
ainda mais o problema, o que constitui um... paradoxo!
Este é, aliás, o grande e inultrapassável
paradoxo do sistema na actualidade, já bastas vezes aqui denunciado: o
enorme incremento da produtividade do trabalho em consequência do
desenvolvimento técnico deveria ter como resultado lógico a libertação do tempo
de trabalho e não, como paradoxalmente parece querer impor-se – sem que
alguém compreenda bem porquê! – o seu aumento, em termos de horas e ritmos de
trabalho. Entretanto, um estudo elaborado por economistas do Centro de Lille de
Estudo e Investigação Sociológica e Económica (Clersé, Le Monde Diplomatique,
Jul/13) explica porque tal acontece, aliás ao arrepio da tendência histórica
mantida até aos anos 70 do séc. passado. Aí se conclui estar o custo do
trabalho a ser penalizado pelo acréscimo de custos financeiros improdutivos
(juros e dividendos) sobre o capital, na sequência da financeirização da
economia então ocorrida (acréscimo na ordem dos 50 a 70% acima dos custos
estritamente económicos). Para além do que isso implica em termos de desvio de
fundos necessários ao investimento em áreas reprodutivas, tanto do ponto de
vista económico estrito, como de reconversão ambiental, apoio social,...
Foi há cerca de 30 anos, que o proselitismo
das convicções liberais teve acesso ao poder e, em nome de uma utopia –
o mercado livre – impôs uma política de desregulação da economia, o que
permitiu ao sector financeiro capturar a economia global (e toda a sociedade!),
pondo-a a funcionar em seu proveito. Desde então, uma sofisticada engenharia
financeira proporcionou ao sector um enorme fluxo de rendimentos (por
transferências do trabalho, mas também dos restantes sectores do capital), determinando,
em contrapartida, o aprofundamento das desigualdades, um persistente
desemprego, o lento definhamento das economias desenvolvidas, o permanente
enviesamento das políticas públicas em benefício próprio,...
A crise das dívidas acentuou de forma dramática este processo de
transferência de recursos, o que explica o agravamento das políticas de
desvalorização do trabalho que têm vindo a ser prosseguidas como forma de se
compensar o sobrecusto absorvido pelo sector financeiro improdutivo. Perante o
descalabro dos resultados económicos obtidos, porém, não pode deixar, aqui
também, de se achar paradoxal a convicção dos economistas liberais na
persistência das políticas que a tal conduziram. Mas, como sempre, será a
realidade a encarregar-se de lhes corrigir o rumo – bem mais cedo do que se
espera.
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