Com o tempo e o desenrolar da crise política, tem vindo a
ganhar maior significado o gesto de Vítor Gaspar que, ao demitir-se do cargo de
Ministro de Passos, considerou indispensável acompanhar essa decisão de uma
carta tornada pública (!), contendo as razões para tal atitude, em que assume a
responsabilidade pelo incumprimento das metas do déficit e da dívida – o
reconhecimento do fracasso das políticas gizadas nesse sentido –
admitindo ainda falta de credibilidade e confiança para a necessária
inversão dessas políticas. A plêiade de indefectíveis fiéis do credo neoliberal
agitou-se num frémito de surpresa, misto de orfandade e traição à causa. A
recuperação do fôlego tem sido penosa e a incredulidade reina nas hostes dos
judiciosos comentadores, encartados académicos, desinteressados políticos e
impolutos banqueiros, a palavra mais ouvida para descrever o estado desta gente
tem sido mesmo ‘confusão’.
Essa carta constitui, sem dúvida, a peça central para a
explicação da presente crise política. Porque ao confessar o fracasso da
política de austeridade – tida, na lengalenga liberal, como o
instrumento chave na recuperação da credibilidade do País, essencial para um
ambicionado ‘regresso aos mercados’ (!) – o seu principal mentor e obreiro
desferiu um golpe fatal na credibilidade e utilidade de tal política. Tão
arrasador que deixou os habituais serventuários do regime e demais sequazes
deste culto, profundamente abalados nas suas certezas e convicções, incapazes
sequer de esconder o desânimo que lhes tolda o denodado proselitismo perante a
opinião pública, prejudicando até gravemente a persistente catequese de
conformação dos espíritos às directrizes da seita.
Perante este desmoronar de
certezas mesmo entre os mais incontestados apoios desta política, o que leva
então Passos e o seu núcleo duro (onde se inclui a generalidade dos
parlamentares de suporte ao Governo) a insistirem com tanto empenho e
descaramento nessas desacreditadas políticas que, numa penada, o ex-Ministro
destruiu? A resposta surge na carta do também demissionário Ministro Portas: dissimulação!
Passos sabe que a única forma de se manter no poder, custe o que custar,
é apresentar-se inabalável nas suas convicções e certezas nos resultados desta
política (o ambiente mais favorável, por razões externas), certo de que só
assim lhe é possível segurar a rede clientelar de interesses e privilégios a
que se encontra ligado. Mas depois do descrédito de ‘tanta convicção’
provocado pela confissão pública daquele seu ex-Ministro, só lhe resta mesmo
proceder conforme a conduta ditada pelo seu outro ex-demissionário (?)
Ministro, fingir que acredita, ser dissimulado!
É nesta trama que o PS se
encontra metido. Para já conseguiu resistir – muito por ‘culpa’ da pressão de
alguns dos seus notáveis que temiam a ‘pasokisação’ do partido – à negociata em
torno de mais ou menos austeridade, rejeitando a fracassada política liberal do
ex-Ministro Gaspar, não aceitando integrá-la ou apoiá-la, nem sequer através da
abstenção (do faz de conta que não estou cá!). Parecia, pois, que, pelo
menos no imediato, não iria embarcar – como em tantas outras vezes no passado,
diga-se – neste cada vez mais denunciado jogo da dissimulação política.
Mas se assim é, qual a razão da recusa em manter o diálogo com a restante
esquerda na busca de uma plataforma comum? Os próximos episódios deverão decerto esclarecer a
trama que trama este PS.
O desfecho desta rocambolesca
epopeia teve o seu epílogo provisório na decisão do PR em dar à
farsa política um novo fôlego, ao confirmar o remodelado Governo de Passos e
Portas. Na lógica desencadeada pelo desafio lançado aos partidos subscritores
do memorando no sentido de um dramático ‘compromisso de salvação nacional’ (!),
impunha-se como única solução coerente a alternativa de dissolução da AR. Pois
se o objectivo era a conciliação de posições entre os ‘dois lados’ do
memorando, concluindo-se pela sua impossibilidade, era forçoso, sob pena da
inutilidade de um tal processo, extrair dele todas as ilações levando-o às
últimas consequências. Tal implicaria confirmar a falta de confiança
política na proposta de remodelação do Governo de Passos e devolver a
palavra aos eleitores, porque são eles que, em última análise, devem
decidir. Ao optar em contrário, ficou patente a falta de coerência do
Presidente em todo este processo.
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