Queda da civilização do trabalho?
“Vivemos no meio de um logro
magistral, de um mundo desaparecido que nos recusamos a reconhecer como tal, e
que políticas artificiais pretendem perpetuar. Milhões de destinos são
devassados e aniquilados por esse anacronismo, devido a estratagemas tenazes
destinados a dar como imperecível o nosso tabu mais sagrado: o trabalho.
Assim se exprimia, já em 1996 (!), a ensaísta e crítica literária do jornal Le
Monde, Viviane Forrester, na abertura de ‘O horror económico’.
Para logo a seguir acrescentar: ‘Desviado sob a forma perversa de ‘emprego’,
o trabalho dá de facto fundamento à civilização ocidental, que domina por
inteiro o planeta. Confunde-se com ela (...). Ora esse trabalho (...) não passa
já, nos dias que correm, de uma entidade destituída de substância.
Os nossos conceitos de
trabalho, e portanto de desemprego, em volta dos quais se desenrola (ou finge
desenrolar-se) a política, tornaram-se ilusórios (...). Mas continuamos a fazer
as mesmas perguntas fantasmagóricas às quais, sabem-no muitos, ninguém
responderá, a não ser o desastre das vidas que esse silêncio destroça e que
representam, cada uma delas, um destino, embora o esqueçamos.
Já antes aqui tinha trazido
citações desta notável ensaísta (falecida há cerca de um mês) e que, não obstante
produzidas à distância de quase vinte anos(!), dão bem a ideia do debate que
timidamente vai despontando em torno do principal drama que, sobretudo nas
sociedades ocidentais, ameaça a vida da maioria das suas populações, perante o
acentuar dos sinais que apontam para o desmoronar do modelo em que até agora
assentava, em boa medida, grande parte da sua estabilidade, segurança e
prosperidade, ‘o mercado do trabalho’. São as próprias condições
de sobrevivência que estão em causa quando o processo de destruição de empregos
e a crescente falta de trabalho (com a consequente insegurança que transmite a
súbita ausência dos rituais habituais que garantiam as tradicionais
perspectivas de subsistência) atingem os níveis actualmente registados nestas
sociedades. Um facto parece, pois, estar cada vez mais a impor-se na realidade
social, o de que o emprego acabou!
Na lógica do sistema, o trabalho
só se justifica, só é necessário, enquanto for útil ao capital, na
medida em que este tiver interesse em explorá-lo. Só é empregado, só tem
direito ao trabalho quem for considerado útil para produzir lucro ou, dito de
outro modo, o trabalho/emprego subsistirá apenas enquanto for útil ao lucro. A
noção de exploração é, pois, por definição, intrínseca à própria prestação do trabalho
assalariado, reduzido a mero factor de produção. É, aliás, o factor mais
facilmente descartável, porque tudo se encontra montado, neste sistema, para
que seja o trabalho o principal responsável por qualquer anomalia no processo
de produção (ausência de qualificação, baixa produtividade, obsolescência dos
produtos,...). Contudo, pior que ser útil, portanto explorável, mas incluído no
sistema, é ficar de fora dele, ser considerado não rentável, supérfluo e
excluído.
Trabalho e emprego (ou
desemprego) fazem de tal modo parte do quotidiano das sociedades actuais,
encontram-se tão enraizados na vida das pessoas, que dificilmente se concebe
outra forma de organização social em que tais conceitos possam encontrar-se
ausentes. O certo é que a sociedade baseada no trabalho, pelo menos tal como a
conhecemos hoje, foi posta irremediavelmente em causa pela própria evolução
tecnológica. À semelhança do que ocorreu em outros momentos históricos de
transição, pode afirmar-se que as relações sociais actuais, assentes em grande
medida no trabalho assalariado, já não correspondem ao avanço alcançado pela
tecnologia, cada vez mais ‘inteligente’ (integração de inteligência artificial)
e libertadora de tempo de trabalho, tornando-se, portanto, num obstáculo à
evolução económica das sociedades, mas constituindo sobretudo um entrave ao
desenvolvimento individual e social do Homem.
Viviane Forrester vê na
globalização a origem da ‘moderna’ exclusão social, a multidão crescente dos
desempregados, pois ‘empregos extintos não serão recriados,
substituídos pela automação inteligente, pela informatização prodigiosa.
E aponta a necessidade de se procurar um outro tipo de organização de
sociedade, de uma mudança urgente de paradigma: ‘Parte do
trabalho humano está a morrer e outra parte está a ser deslocalizado (até
morrer). O problema fundamental não pode ser resolvido com a luta pelo emprego
(porque este está a desaparecer), mas com a luta pela distribuição da riqueza
criada.(...) Os downsizings e as reduções de pessoal não se devem a
deslocalizações, mas sim à automatização, à robotização e à informatização.’
Os problemas das deslocalizações e da invasão de produtos
muito baratos vindos do extremo oriente, resultam das leis do próprio
capitalismo...num processo que conduzirá à sua própria auto-destruição.’
É pena que os melhores de nós vão desaparecendo, sobretudo num tempo em
que o seu contributo mais se tornaria necessário. É a lei da vida, é certo. A
mesma que ditará também a hora do capital!
(...)
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