segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Aldrabice e voz grossa, na marginalidade do poder do mercado


Tem vindo a notar-se, ultimamente, uma alteração de registo na forma de comunicação do Governo – a começar pelo Primeiro Ministro – sempre que interpelado em público, seja em declarações aos órgãos de comunicação social, no Parlamento ou em quaisquer actos públicos. Até agora imperava o ritmo pastoso e monocórdico do Ministro Gaspar ou o tom melífluo, quase padreca, de Passos Coelho. Mas por nervosismo ou estratégia de comunicação, suas excelências decidiram mostrar voz grossa, exibindo laivos de irritação e até arrogância. Rasgar as vestes com ar ofendido, passar à ameaça e à responsabilização alheia pelo desvario de actos de que eles são, sabem-no bem, os principais responsáveis e instigadores. O próprio Ministro Gaspar, sempre tão cerebral e etéreo, em inopinado arreganho que pretendia ser desafiador, ameaçou alterar a voz se o continuassem a questionar sobre assunto (não interessa qual) a que, entendia ele, já havia respondido!

Mais notório ainda, não por acaso, o consenso alcançado em torno da queda dos dois principais tabus da governação: por um lado, a evidência de que a via da austeridade inevitável e sem alternativa não resolve o problema do déficit, antes o agrava; por outro e na sequência deste, que a renegociação do memorando junto da troika – ‘velha’ exigência da esquerda, crime de lesa pátria para a direita, já o PS, como de costume, balança... – de repente passou a ser, além de inevitável, urgente. Entretanto, a relutância do Governo, acantonado na defesa das suas posições, em assumir as consequências políticas destas realidades, permite alimentar a convicção, também cada vez mais consensual, de que assim procede ‘apenas’ em obediência a uma estratégia política de destruição do Estado Social, ainda que o faça em nome da tese liberal da ‘destruição criadora’, acreditando deste modo ser possível revitalizar a estrutura produtiva e social do País.

Esta estratégia política do Governo, é bom referi-lo, sintetizou-a Passos quando, há cerca de um ano, afirmou que ‘só vamos sair da crise empobrecendo’! Os resultados obtidos ao fim de ano e meio de governação exprimem bem todo o conteúdo do Programa político que se inscreve nesse objectivo de ‘empobrecer para crescer’ que o Governo, na sua fundamentalista obediência ideológica, tem vindo a executar meticulosamente: destruição das pequenas e médias empresas, desemprego a disparar para níveis incontroláveis, taxa de pobreza a caminho do terço da população (situava-se, antes deste programa, ligeiramente abaixo do quinto), desigualdade a aumentar, agora agravada por via da menor progressividade das novas taxas de IRS.

No final deste processo, restará aos iluminados governantes – alguns por convicção, a maioria por acomodação (ou cobardia?) – decretarem, sobre a pobreza ‘conquistada’ e na esteira do argumento de ‘o país viver acima das suas possibilidades’, a inviabilidade do Estado Social. Doravante quem recorrer aos serviços públicos, à semelhança dos privados, paga-os! Não há lugar para calões ou distinções (ou direito à diferença), todos iguais perante o dinheiro! Assim se (re)constrói um país novo de acordo com a bíblia liberal! Contra tudo e contra todos!

Porque, acresce dizer, a monstruosa arquitectura desta estratégia ruinosa – ruinosa sob qualquer ponto de vista – foi montada e está a ser conduzida por gente menor, incompetente, falha de senso. Que ascende ao poder, recorde-se, na sequência da maior mistificação da nossa história democrática: nada disto foi decidido pelos eleitores – bem ao contrário! – tudo isto tem vindo a ser veementemente repudiado nas ruas – e ameaça mesmo descambar para outras formas de contestação! E revela-se na ‘clique’ que o lidera: a do PSD (como se sabe, partido de muitas ‘cliques’), com a do sempre prestimoso CDS/PP. Temos, pois, por um lado, a ‘escola PC/Relvas’ – a escola dos troca-tintas, associada à dos fura-vidas manhosos; por outro, o sistema de ‘Portas sempre abertas’ – o CDS mantém-se no Governo e, ao mesmo tempo, na... oposição ao Governo! Está nos genes ‘deste’ CDS, postado no lugar charneira do centrão, piscar o olho ao poder quando na oposição, piscar o olho à oposição quando ocupa o poder. 
  
Esta a componente caseira, marginal e rasteira, responsável pela acelerada ruína do País. Sobre a ‘externa’, decisiva e imperial, já muito foi dito (incluindo as várias teorias da conspiração, como a de uma eventual reconstrução do IV Reich alemão...), mas tudo ainda está por decidir, sobretudo no que respeita à evolução da realidade no contexto desta globalização financeira sem regulação nem controle, cada vez mais entregue aos pretensos automatismos dessa 'utopia negativa' (suicida e criminosa, pois arrasta tudo na sua queda) que se designa por ‘mercado auto-regulado’ – onde não há lugar para o Estado Social, apenas para as funções securitárias de um Estado mínimo!

Sem comentários: