Tem vindo a notar-se, ultimamente, uma alteração de
registo na forma de comunicação do Governo – a começar pelo Primeiro Ministro –
sempre que interpelado em público, seja em declarações aos órgãos de
comunicação social, no Parlamento ou em quaisquer actos públicos. Até agora
imperava o ritmo pastoso e monocórdico do Ministro Gaspar ou o tom melífluo,
quase padreca, de Passos Coelho. Mas por nervosismo ou estratégia de
comunicação, suas excelências decidiram mostrar voz grossa, exibindo laivos de
irritação e até arrogância. Rasgar as vestes com ar ofendido, passar à ameaça e
à responsabilização alheia pelo desvario de actos de que eles são, sabem-no
bem, os principais responsáveis e instigadores. O próprio Ministro Gaspar,
sempre tão cerebral e etéreo, em inopinado arreganho que pretendia ser
desafiador, ameaçou alterar a voz se o continuassem a questionar sobre assunto
(não interessa qual) a que, entendia ele, já havia respondido!
Mais notório ainda, não por acaso, o consenso alcançado em
torno da queda dos dois principais tabus da governação: por um lado, a
evidência de que a via da austeridade inevitável e sem alternativa não resolve
o problema do déficit, antes o agrava; por outro e na sequência deste,
que a renegociação do memorando junto da troika – ‘velha’ exigência da
esquerda, crime de lesa pátria para a direita, já o PS, como de costume,
balança... – de repente passou a ser, além de inevitável, urgente. Entretanto,
a relutância do Governo, acantonado na defesa das suas posições, em assumir as
consequências políticas destas realidades, permite alimentar a convicção,
também cada vez mais consensual, de que assim procede ‘apenas’ em obediência a
uma estratégia política de destruição do Estado Social, ainda que
o faça em nome da tese liberal da ‘destruição criadora’, acreditando deste modo
ser possível revitalizar a estrutura produtiva e social do País.
Esta estratégia política do Governo, é bom referi-lo,
sintetizou-a Passos quando, há cerca de um ano, afirmou que ‘só vamos sair
da crise empobrecendo’! Os resultados obtidos ao fim de ano e meio de
governação exprimem bem todo o conteúdo do Programa político que se inscreve
nesse objectivo de ‘empobrecer para crescer’ que o Governo, na
sua fundamentalista obediência ideológica, tem vindo a executar
meticulosamente: destruição das pequenas e médias empresas, desemprego a
disparar para níveis incontroláveis, taxa de pobreza a caminho do terço da
população (situava-se, antes deste programa, ligeiramente abaixo do quinto),
desigualdade a aumentar, agora agravada por via da menor progressividade das
novas taxas de IRS.
No final deste processo, restará aos iluminados
governantes – alguns por convicção, a maioria por acomodação (ou cobardia?) –
decretarem, sobre a pobreza ‘conquistada’ e na esteira do argumento de ‘o país
viver acima das suas possibilidades’, a inviabilidade do Estado Social.
Doravante quem recorrer aos serviços públicos, à semelhança dos privados,
paga-os! Não há lugar para calões ou distinções (ou direito à diferença), todos
iguais perante o dinheiro! Assim se (re)constrói um país novo de acordo
com a bíblia liberal! Contra tudo e contra todos!
Porque, acresce dizer, a monstruosa arquitectura desta
estratégia ruinosa – ruinosa sob qualquer ponto de vista – foi montada e está a
ser conduzida por gente menor, incompetente, falha de senso. Que ascende ao
poder, recorde-se, na sequência da maior mistificação da nossa história
democrática: nada disto foi decidido pelos eleitores – bem ao contrário! – tudo
isto tem vindo a ser veementemente repudiado nas ruas – e ameaça mesmo
descambar para outras formas de contestação! E revela-se na ‘clique’ que o
lidera: a do PSD (como se sabe, partido de muitas ‘cliques’), com a do sempre
prestimoso CDS/PP. Temos, pois, por um lado, a ‘escola PC/Relvas’ – a
escola dos troca-tintas, associada à dos fura-vidas manhosos; por outro, o
sistema de ‘Portas sempre abertas’ – o CDS mantém-se no Governo e, ao
mesmo tempo, na... oposição ao Governo! Está nos genes ‘deste’ CDS, postado no
lugar charneira do centrão, piscar o olho ao poder quando na oposição, piscar o
olho à oposição quando ocupa o poder.
Esta a componente caseira, marginal e rasteira, responsável pela acelerada ruína do País.
Sobre a ‘externa’, decisiva e imperial, já muito foi dito (incluindo as várias teorias da conspiração, como a de uma eventual reconstrução do IV Reich alemão...), mas tudo
ainda está por decidir, sobretudo no que respeita à evolução da realidade
no contexto desta globalização financeira sem regulação nem controle, cada vez
mais entregue aos pretensos automatismos dessa 'utopia negativa' (suicida e criminosa, pois arrasta tudo na sua queda) que se designa por
‘mercado auto-regulado’ – onde não há lugar para o Estado Social, apenas
para as funções securitárias de um Estado mínimo!
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