Se algum mérito é possível descortinar nesta crise, ele é
o de ter levado as pessoas a pensar para além da mera gestão do quotidiano. A
questionarem as condições das suas existências, a não darem por adquiridos
todos os benefícios alcançados, pessoais e sociais. A terem de restringir
despesas, algumas certamente supérfluas. A procurarem explicações
para aquilo que tem vindo a afectar, de forma mais ou menos intensa, as suas
vidas. Na maior parte das vezes, é certo, servindo-se dos clichés ouvidos nos
‘media’ pelos comentadores de serviço ao regime, ainda assim bem além da
modorra de telenovelas, futebóis, prédicas e demais rezas (religiosas ou
laicas).
Um desses clichés mais ouvidos e lidos, já antes abordado neste blog, é o que, no quadro de uma UE composta pela enorme diversidade de
países que a integram, tenta explicar o comportamento alemão na actual crise,
na versão ‘Merkel’ (felizmente há outras versões), com a hipotética permuta de
posições: ‘eu, se fosse alemão, também não gostaria de ver o meu dinheiro
canalizado para suportar o défice de países gastadores’. A lógica inscrita
neste aparente irrefutável – e insistente – argumento assenta pelo menos em dois
falaciosos mitos: o mito do país gastador e o mito do país salvador!
Pretende-se transmitir a ideia, por um lado, que as
dívidas soberanas (só lhes importa, por motivos óbvios, destacar estas) são
sobretudo o resultado do excesso de gastos das políticas públicas, nomeadamente
no domínio social (as teses correlativas do ‘viver acima das possibilidades’
e do consequente ‘excesso de garantias e regalias do Estado Social’);
por outro, que tais desregramentos só podem ser resolvidos ou pelo recurso à
via da austeridade própria ou suportados pela generosidade alheia dos ‘altruístas’
(!) países de ‘contas certas’, bem mais disciplinados e organizados.
A evidência de gastos públicos desnecessários,
improdutivos ou até mesmo fraudulentos em algumas situações, não pode nem deve
iludir que o essencial da dívida por trás da actual crise – e da
dimensão por esta atingida – foi gerada pela roleta especulativa dos
mercados, por inépcia dos responsáveis pela condução política da UE. Na
ausência de órgãos próprios dotados de suficiente capacidade de decisão (e de
personalidades de reconhecida aceitação e idoneidade!), a Alemanha, enquanto
principal potência económica no seio da União, foi assumindo e conseguiu fazer
impor a sua liderança, contando nesse propósito com o apoio manco da França de
Sarkozy.
Ora, na dita versão Merkel, a liderança alemã tem sido
orientada apenas para o que considera ser o seu interesse particular,
indiferente aos interesses comunitários, com total desprezo pelas regras
básicas de uma União Monetária e de uma Moeda Única, pelo que a eventual (e
cada vez mais provável) desagregação da zona Euro irá ter fortes implicações
negativas também sobre a própria Alemanha, como o referem insuspeitos estudos
efectuados (UBS) antecipando já esse evento.
Se hoje parece claro que o descalabro a que se chegou
poderia ter sido evitado caso a liderança alemã tivesse, no exercício do poder
de que dispunha, actuado logo no início impedindo a escalada especulativa (que
permitiu, é certo, a recapitalização da sua banca sem os apoios financeiros
agora anunciados para outros sistemas), mais óbvio se torna ainda o desastre
económico (para não falar do social) provocado pela alternativa da austeridade
imposta na base da política do ‘cada um por si’ (ou do ‘salve-se quem puder’) e
que ameaça alastrar em bola de neve ao conjunto dos países da zona Euro. Que
ameaça mesmo a pretensa prosperidade de aço da própria Alemanha, uma vez
que esta assenta basicamente no poder aquisitivo, cada vez mais atrofiado, dos
restantes países europeus.
A Alemanha caminha assim para se tornar em vítima dela
própria. O facto de dispor de poder e não o ter exercido no momento oportuno,
não abona nada o seu propalado rigor e competência. Mesmo que o haja feito de
forma deliberada visando propósitos que não lhe convém explicitar publicamente,
o resultado observado no conjunto da UE – prolongada recessão económica
(tornando cada vez mais difícil as condições de resolução das dívidas),
contínua degradação social (destruição de postos de trabalho, redução de
direitos essenciais,...) – parece demolidor sob qualquer prisma.
Independentemente das estratégias assumidas ou dos
propósitos declarados, resta, no final, a percepção cada vez mais generalizada
de que o objectivo último desta escalada é a destruição do Estado
Social à sombra de cortes na despesa dita insustentável, a par da desvalorização
do trabalho por conta da mais obsoleta versão da competitividade externa e do
mirífico reforço das condições de atracção do investimento estrangeiro – sem
que tenha conseguido resolver qualquer dos objectivos que se propunha, apenas
tendo contribuído para acentuar as dificuldades da vida da maioria das pessoas
e aumentar as desigualdades sociais, falando-se já num claro retrocesso
civilizacional.
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