O mercado acima da política
Quando, em Setembro de 2008, a falência do Lehman Brothers
prenunciou um eminente colapso financeiro mundial e a ameaça se estendia mesmo
à derrocada do próprio capitalismo (cf. Attali), em pânico os responsáveis
políticos dos maiores blocos económicos anunciaram a sua disposição de intervir
rapidamente sobre as próprias condições de funcionamento do sistema. De um lado
e do outro do Atlântico sucedem-se reuniões e decisões numa frenética corrida
contra o tempo com vista a repor a confiança no abalado sistema financeiro.
Para além do reforço das garantias aos depositantes e de precipitadas
nacionalizações de inúmeras instituições bancárias e seguradoras, um pouco por
todo o lado, em Novembro os ministros das Finanças da UE acordam numa reforma
em cinco pontos, em que os dois mais emblemáticos eram o controle das
agências de rating (ainda longe dos ‘estragos’ que posteriormente
viriam a provocar) e a interdição das praças financeiras off-shores!
Passado o susto, porém, tudo isto foi esquecido e o mundo
retomou o caminho da ‘normalidade’, de forma ainda mais acentuada: especulação
financeira ditada pelo domínio absoluto das regras do ‘mercado livre’ (as
agências de rating assumem o poder efectivo nas decisões políticas); transferência
de recursos do trabalho para o sector financeiro (reposição do valor
destruído pelo rebentamento da ‘bolha’ especulativa) com base no discurso da
inevitável austeridade, seja directa ou indirectamente com a destruição
do Estado Social! Em nome de uma propalada eficiência dos mercados, tanto
mais possível – assim reza a doutrina – quanto mais livres eles forem!
Quando, no início dos anos 30 do séc. XX, o capitalismo
parecia enredado (e prestes a soçobrar) na pureza dos princípios do ‘mercado
livre’, o conservador lorde britânico J.M. Keynes percebeu que só a intervenção
do Estado na economia (contra todos os dogmas, pois) o poderia salvar
de uma morte anunciada. Foi do intervencionismo keynesiano, juntamente com a
experiência do New Deal de Roosevelt (também fortemente intervencionista), que
resultou a lenta negociação do Pacto Social na origem do moderno Welfare State,
o qual garantiria ao mundo capitalista o seu maior período de paz e prosperidade
– os 30 gloriosos anos – não obstante a importância, para ambas, de um
contributo tão improvável como o propiciado pelo clima ameaçador da Guerra Fria
no equilíbrio mundial (o equilíbrio do terror).
Não foi pacífica – e muito menos isenta de acesa luta
ideológica (além da política, sindical,...) – a ascensão das ideias que
conduziram à adopção do modelo de Estado Social. Desde cedo Hayek e a ‘sua’
escola austríaca, posteriormente organizados na Societé Mont Pèlerin, encetaram
uma autêntica cruzada tendo como propósito o combate ao colectivismo,
considerado no sentido mais amplo do termo, nele englobando os regimes
fascista, nazi, soviético e, pasme-se, a então nascente teoria keynesiana,
acusada da suprema heresia de pretender estabelecer uma via intermédia entre a
economia de mercado e o recurso à intervenção estatal.
Como se sabe, esta cruzada levou à vitória, já nos anos
80, do ‘thatcherismo’ no Reino Unido e do ‘reaganismo’ nos EUA,
aqui com o esteio do talvez principal guru das ideias neoliberais, Milton
Friedman. O seu objectivo confesso passa pela desestatização da sociedade,
libertando o indivíduo da tutela do Estado, tido como o grande obstáculo à
completa expressão das suas capacidades. Na prática, pretendem afastar a
política do caminho do mercado, sob pretexto de as supostas soluções técnicas
que este induz serem mais eficientes na aplicação dos recursos e neutras na
decisão (não comprometidas com as partes envolvidas). Deste modo, toda a
regulação social, tanto a nível económico como político, pertenceria ao
Mercado, mecanismo que, dizem, assegura uma alocação óptima dos recursos
escassos e a sua hipotética neutralidade seria o garante da isenção e
eficiência nas opções a tomar. Ao contrário do Estado que, segundo eles,
capturado por grupos de interesses, tenderia a ser ineficiente e até corrupto.
(...)
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