segunda-feira, 31 de outubro de 2011

As crises e a Crise deste insustentável crescimento contínuo – II

A falência das teorias dominantes

A realidade económica e social nunca é a reprodução fiel do que a política (mesmo a das políticas económicas – ou das economias políticas?) quer fazer dela. Assiste-se hoje a uma espécie de ‘braço de ferro’ entre as duas teorias económicas que têm dominado a política do mundo ocidental nos últimos 80 anos (pelo menos): de um lado, claramente na ofensiva, o liberalismo, com o primado do mercado, livre de interferências externas; do outro, em posição política defensiva (mas em crescendo ideológico) o keynesianismo, com a defesa da intervenção do Estado, indirectamente através da regulação do mercado, ou mesmo, quando necessário, pela via dos investimentos públicos directos. Objectivo comum, o crescimento, na busca do progresso e da maior satisfação das necessidades.

O debate que hoje se trava em torno do endividamento crescente dos Estados mais não visa, afinal, que o relançamento económico com vista à retoma do crescimento. Dos planos de austeridade advogados pela corrente liberal (tendo em vista controlar os défices supostamente gerados por políticas expansionistas), às propostas de um maior apoio público à economia (única via, advogam, que pode criar as condições para se pagarem as dívidas contraídas em resultado de tais défices). A realidade ora parece dar razão a uns em detrimento dos outros, ora garante que o rumo seguido irá descambar na catástrofe.

Nunca como agora, é certo, essas diferenças na forma de encarar a acção política no campo da economia pareceram expressar-se de forma tão extremada, trazendo à memória os tempos de emulação com o extinto sistema comunista soviético, cuja erradicação (por implosão) alimentou durante algum tempo a generalizada suposição de não haver alternativa ao capitalismo. Só até à eclosão, no entanto, da mais grave crise do sistema, posto à beira do colapso, mas cujo desfecho parece confinar-se, por agora, entre o aprofundamento do modelo liberal que a gerou (ainda com maior desregulação?) e o retorno ao ‘velho’ modelo keynesiano (maior intervenção pública na economia, em período de graves desequilíbrios financeiros?).

O objectivo do crescimento, esse, é que parece mesmo cada vez mais arredado de se alcançar, tanto nos países ditos em dificuldades como nos que aparentemente se encontram ainda livres delas (mas cujo destino a decantada globalização uniu ao destino dos mais fracos). O que afinal parece estar por trás de toda esta crise e a ser posto em causa, reflectido nas diferentes teorias para sair dela, é o crescimento, ele mesmo. O que implica dever questionar-se o modo de vida assente no motor do sistema, o crescimento contínuo. Mas se isso é assim, então é o próprio sistema que merece ser controvertido, que parece estar a chegar ao fim.

Mais que uma crise financeira, mais até que uma periódica crise económica, trata-se, pois, de uma profunda (e já genericamente admitida) ‘crise sistémica’, é o próprio modelo de desenvolvimento assente no crescimento contínuo que se encontra posto em causa, esta é ‘a Crise do crescimento’. Em lugar de se falar em ‘crescimento sustentável’, deve antes afirmar-se que o ‘crescimento’ deixou, por natureza, de ser sustentável. Por força das dinâmicas instituídas, percebe-se a urgência actual na sua persecução, seguramente durante algum tempo mais (quanto mais?) o crescimento será ainda necessário, por forma a permitir-se a acomodação da tendência que o estabelecia como ilimitado e a adaptação a um novo modo de produção baseado no realismo de recursos limitados.

Aceita-se (?) como inevitável uma quebra generalizada dos rendimentos disponíveis nas pessoas. Admite-se mesmo ter-se vivido acima das possibilidades, já descontado o efeito das distorções causadas pelas generalizações estabelecidas com base em médias estatísticas, normalmente encobrindo realidades muito díspares. E esta percepção hoje manifesta nos países ditos em dificuldades financeiras, rapidamente alastrará, por força da globalização, aos até agora imunes à crise. Mesmo países onde o crescimento continua a apresentar taxas elevadas começam a evidenciar sinais de desaceleração, como na China, onde as condições que o permitiram ameaçam esgotar-se, obrigando o regime a trabalhos de cosmética estatística, para poder continuar a exibir números equivalentes aos da última década.
(...)

sábado, 29 de outubro de 2011

As crises e a Crise deste insustentável crescimento contínuo – I


A política económica contra a vida

A actual crise financeira é apenas o efeito mais visível dos múltiplos desequilíbrios que hoje afectam a organização das sociedades e das consequentes tentativas levadas a cabo pelos diversificados interesses que nelas se digladiam de os resolver a seu favor. É a capa ou a forma adoptada, desta feita, pela crise mais global que ameaça o sistema pondo em causa a sua continuidade. Por trás dela perfilam-se todos os problemas sociais que, a seu tempo, exigirão outra organização e determinarão outro sistema.

Os episódios que o indiciam estão tão inseridos no quotidiano das pessoas e são tão frequentes que a sua ocorrência já pouco surpreende, dificilmente alguém pára para sobre eles reflectir ou ainda menos os questionar, perdeu-se a noção da sua importância e da influência que exercem sobre a vida das pessoas. É o caso, por exemplo, da permanente tensão entre o sobe e desce das taxas e o circo especulativo instalado nas Bolsas de todo o mundo, desbragado ritual completamente alheio à realidade vivida, mas onde se joga (literalmente) o destino de milhões de pessoas, num carrossel incontrolável em que se produzem e destroem  fortunas inauditas, se fazem e desfazem vidas concretas.

Outros, enfim, assumem o carácter de insólitos ou provocatórios. Recentemente os ‘mais ricos’ de alguns dos países ‘mais desenvolvidos’ do planeta (EUA, França, Alemanha,...), decidiram, num inusitado gesto filantrópico (?), lançar um apelo aos respectivos Estados no sentido de lhes taxarem as suas imensas fortunas. A percepção de que, no actual processo de transferência de valor do trabalho para o capital (que tem permitido a acumulação de riquezas colossais num reduzido número de pessoas), poderiam estar a ser ultrapassados os limites do suportável, pondo em risco a própria continuidade do sistema que tanto os tem mimado (nas palavras de um deles) – que é como quem diz, a sobrevivência da ‘galinha dos ovos de oiro’ – só aparentemente é contraditório com a lógica de um sistema que se demonstra insaciável e alheio a considerações morais. Trata-se, no fim de contas, do instinto de sobrevivência interpretado pela elite dos interesses em causa.

A demarcação contrastante entre a sofisticação do aparato cerimonioso de que se rodeiam os decisores (políticos e económicos) responsáveis pela imposição da actual austeridade e as rotinas laboriosas dos que lhe sofrem os efeitos, entre a preservação incólume de requintados modos de vida e a crescente ruína de vidas em desespero, põe em confronto dois mundos opostos, de costas voltadas, não obstante a legitimação (a democrática e a ditada pelo mercado) reivindicada pelos primeiros.

No debate parlamentar com o Governo, após o anúncio das principais medidas dos OE/12-13 – o tempo do plano de austeridade imposto pela ‘troika’ – Jerónimo de Sousa, de dedo em riste para Passos Coelho, profere a frase assassina: ‘Ó Sr. Primeiro Ministro, você sabe lá o que é a vida!’. Incomodado pela nudez subitamente exposta, o visado replica de forma repetitiva, quase mecânica: ‘Eu sei o que é vida, eu sei o que é a vida,...’ Seis vezes o repetiu num claro exercício psicanalítico de autoconvencimento, mas a frase fora-lhe fatal, a si e ao projecto ideológico que, sob os auspícios do FMI, pretende realizar (não o esconde) a expensas lusas. A ele e ao grupo de fundamentalistas loucos que não têm pejo de levar por diante experiências teóricas por conta da vida de milhões de pessoas (‘bando de criminosos’, ousou chamar-lhes Vasco Lourenço!). Indiferentes aos dramas provocados por tais medidas, inebriados pelo brilho de modelos económicos construídos à margem da vida real. E, por isso, votados ao fracasso, mesmo que a poder de recursos e sofrimentos inauditos.

Episódios ou sintomas de um mundo alheio às dificuldades da vida da esmagadora maioria das pessoas, não obstante a imensa tecnologia hoje disponível para o tornar menos penoso, mais suportável e até agradável. Vive-se um vago e nebuloso clima de fim de império, entre orgias e miséria, com as pessoas a antecipar a perda irreparável do que tinham por adquirido, direitos ou simples regalias, estranho prenúncio de algo que se pressente eminente mas que ninguém ainda ousa antecipar ou definir.