domingo, 6 de novembro de 2011

As crises e a Crise deste insustentável crescimento contínuo – IV


Obstáculos à mudança

Não foi a ganância dos banqueiros, ao contrário do que se pretende insinuar sempre que se fala sobre este tema, a principal causa da crise financeira, muito menos da sua transformação na actual crise global, cujas proporções ainda não são totalmente percebidas. Maior peso tiveram as decisões dos políticos, Thatcher e Reagan à cabeça, que conscientemente abriram o caminho e prepararam as condições para que a acção dos banqueiros pudesse exercer-se sem quaisquer entraves ou limites, criando o ambiente propício à expressão mais primária das emoções humanas (agressividade, egoísmo, ganância,...), numa idealizada reprodução pretensamente próxima da lei natural (ou da selva?), pois só assim era possível – diziam! – extrair com a maior eficácia, todo o potencial dos recursos, materiais e humanos.

Foi o longo processo de desmantelamento das regras estabelecidas em Bretton Woods – regras prudenciais ditadas, também então, pelo descalabro liberal que, à época, provocou a Grande Depressão – que tornou possível a criatividade financeira que conduziu à crise. É bem sabido que todo este processo de ‘desregulamentação’ foi longamente preparado por empenhados ‘think thank’ ideológicos, com relevo para a Societé Mont-Pèlerin, o IEA e a Escola de Chicago, a que tive oportunidade de já por aqui me referir com algum detalhe. Surge quem dentro do sistema ouse criticar o excesso de consumismo e os maus hábitos criados pelo crédito fácil, mas fá-lo seguindo a lógica competitiva do ‘salve-se quem puder’, do retorno a uma autarcia serôdia. Condições para, a prazo, se agravar a crise global.

É, pois, na esfera política que se detecta o primeiro e grande obstáculo à mudança. Na capacidade democrática para inverter este laborioso processo tecido com objectivos bem definidos, desde logo quebrando o bloqueio mental imposto pela ideologia dominante – que nada mais consente senão a visão única da realidade que lhe convém – mas também sabendo erguer uma via alternativa. Que terá de passar, no imediato, pelo controle do poder financeiro mundial, com a imposição de um quadro legal de regulação que estabeleça bem os termos e os limites de cada operador e actuação: delimitação das diferentes áreas financeiras (poupança, segurança, investimento), retoma do controle monetário pelos Bancos Centrais (incluindo o BCE), papel das funções de rating,...

Não menos importante, até pela potencial maior dificuldade que envolve a sua concretização, é destronar os interesses instalados, desde os grandes e dominadores, que construíram todo um sistema voltado para o exclusivismo (e a sua principal ‘vítima’ foi o Estado e as funções sociais que era suposto este proteger), do qual resultou o actual modo de vida insustentável, aos pequenos serventuários (gestores e técnicos), que se erguem na sua sombra, essenciais à construção e manutenção do modelo social que o suporta. O que implica a definição, directa ou indirecta (via fiscal), de uma política de rendimentos que defina os limites a que cada um pode aspirar num quadro de recursos limitados, numa democracia de inclusão.

Resta ainda a armadilha da dívida externa, dominada e bem manipulada pela especulação internacional, que tem hegemonizado de forma quase absoluta a análise e discussão sobre a crise e as alternativas para a superar, transmitindo a percepção de que existe uma única saída – a teoria da austeridade inevitável – apresentada de tal modo que parece mesmo impossível ser... de outro modo (fora dela, só a catástrofe e o caos!). E aqui impõe-se ousar atacar o centro nevrálgico por onde opera a especulação internacional, extinguindo os ‘off-shores’ financeiros, verdadeiros santuários deste sistema assente na completa desregulação.

Importa que tudo isto se faça com a participação democrática das pessoas, motivando-as a colaborar através das mais diversas formas, institucionais ou informais, por recurso aos meios tecnológicos disponíveis. Exercício interessante, tanto do ponto de vista da indignação que revela, como da vontade de participar, é o que se pratica na NET, sobre textos objecto de muitas versões e propostas. Algumas dessas medidas, de carácter económico, político ou até moralista (nem todas, obviamente, exequíveis), revelam bem a urgência na construção de uma alternativa política à actual dominação do mercado.

Afinal não é a Grécia (ou Portugal, agora a Itália,...) que vive acima das suas possibilidades. O Mundo inteiro vive acima das suas possibilidades, por via de um estilo de vida que se sabe insustentável a prazo, inviável por natureza. Produzido por um modelo de organização social baseado no desperdício mais do que em necessidades, em valores de troca mais do que em valores de uso. Que opõe a ideologia da diferença exclusivista à diversidade do real, na defesa de alguns (países ou pessoas) poderem gastar/consumir mais do que outros.

Afinal, o maior obstáculo à mudança é mesmo este modelo de organização social que alimenta a ilusão de se poder manter incólume um modo de vida assente no desperdício e na desigualdade!

Sem comentários: