sábado, 9 de abril de 2011

Sobre a crise do trabalho – I

O discurso das ‘inevitabilidades’


Os últimos tempos têm sido particularmente pródigos em factos e acontecimentos mediáticos, autêntico maná para a instalada e sôfrega tribo de analistas e comentadores. Tanto a nível interno – da demissão de Sócrates e subsequente intervenção externa (com a continuada destruição do Estado Social) ao regresso em força do poder das corporações (as ‘várias’ da justiça, a dos militares, a dos professores,...) – como no plano internacional – do imparável descalabro do ‘euro’ (a Grécia funcionou aqui como o Lehmann no desencadear da crise) à imposição à bomba do ‘dogma’ (!) da democracia pelo instalado poder global neoliberal (porquê (só) a Líbia?... então e o Darfur?).


Por mim, dou em tentar alhear-me dos circunstancialismos da conjuntura (por mais importantes que sejam os factos nela ocorridos) para me fixar sobretudo nos aspectos que considero decisivos para o futuro das pessoas e das sociedades onde estas vivem. Dou comigo a pensar, desta feita, nesse estranho mas exemplar fenómeno (porventura natural para a maioria) dos ‘working richs’ (WR). O termo retiro-o da leitura de um pequeno texto (‘Globalização, o pior está para vir’), o conceito há muito que o adoptei e o tenho abordado: a par da extrema precariedade laboral e do crescente desemprego, há quadros que auferem salários obscenos (o mercado assim o exige, dizem), muitos deles, não por acaso, ligados ao descalabro financeiro que provocou a crise global.


Na verdade já não é a primeira vez que aqui trago o tema, ele impõe-se sobre os restantes aspectos da política actual pelo drama que constitui para uma massa crescente de pessoas, a exclusão do direito ao trabalho. Ademais, a lógica instituída que determina a selecção dos que logram obtê-lo, parece querer transmitir aos excluídos – na melhor tradição da tese calvinista da predestinação, que se diz ser uma das origens do ‘espírito’ do capitalismo (?) – o anátema da culpa, de lhes fazer crer serem eles próprios os responsáveis por tal situação, pela preguiça ou falta de ambição que demonstram. E se a alguns é possível apontar o dedo, a esmagadora maioria pura e simplesmente vê-se dele arredado com base apenas na lógica imposta pela doutrina liberal dominante.


Porque o principal efeito do avassalador domínio neoliberal dos últimos 30 anos não se encontra na área económica, mas na social. Mas apesar das convulsões em torno da crise actual apontarem já claramente responsabilidades, o férreo controle ideológico e político da economia mostra não ser ainda o momento de se proceder ao balanço económico destes anos e, sobretudo, do rasto que vai deixar para o futuro (da sustentação ambiental às sequelas psíquicas). Porque, afinal, além dos efeitos na economia, o maior impacto dos cânones liberais revela-se a nível das alterações na estrutura social (na terminologia do sistema, a nível da ‘mobilidade social das escalas de estratificação’).


Acentuam-se cada vez mais as clivagens dentro das sociedades, tanto a nível nacional como mundial, por efeito de uma globalização sem controle político. Logo ressurgem, em tempos de crise (como agora), apelos de pendor nacionalista. ‘Todos devem contribuir para resolver a crise’, ‘a austeridade toca a todos’,... não passam, porém, de slogans agitados com o fim de arregimentar vontades em prol de um suposto esforço colectivo exigido pelos desequilíbrios das contas externas, servem apenas para esconder realidades sociais muito díspares e justificar a aplicação indistinta de uma política de extorsão social.


Um mínimo de objectividade, histórica e sociológica, implica a rejeição de tal discurso assente num pretenso destino colectivo dos povos ou nações: apelar a uma amalgamada identidade cultural visa apenas justificar as desigualdades interclassistas (tidas como naturais e inevitáveis) e a indiscriminada repartição da austeridade. Serve para, de forma obscena e ultrajante, empanturrados comentadores imporem a ideia de que as dificuldades tocam a todos por igual, que se torna inevitável aceitar-se mais austeridade.


Pondo de lado atavismos deslocados, resta-lhes então o recurso à tese da predestinação: para uns, o anátema da azelhice culpada; aos afortunados eleitos – os 'WR', como se verá – a glória dos proveitos arrecadados! Para maior honra e louvor desta ‘globalização feliz’!


(...)

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