domingo, 30 de janeiro de 2011

A indiferença de Davos aos protestos do Cairo

A actualidade dos últimos dias tem sido largamente dominada pelas revoltas populares do Norte de África. Sem qualquer aviso prévio, primeiro na aparentemente inofensiva Tunísia (inofensiva por ser a primeira e pela longa tradição de brandura social), agora no já mais perigoso Egipto (pela dimensão do país, localização geográfica e papel de liderança que assume na geopolítica do mundo árabe), populações em fúria manifestam a sua revolta nas ruas, desta feita não por via das sempre mistificadoras razões de base religiosa específicas desta região, mas contra a insustentável situação social de contínua degradação das suas condições de vida. Na base de tudo e sem grandes surpresas, detecta-se o crescente desemprego que, também por aqui, alastra sem freio, com especial relevo para o de longa duração e o dos jovens. Agravado, é certo, por uma crise alimentar gerada por múltiplos factores (catástrofes ambientais, alterações climáticas, especulação financeira sobre os produtos agrícolas,...).

Ainda é cedo para se poder fazer uma análise ou mesmo um balanço prévio sobre tudo o que está a acontecer na região. Os acontecimentos sucedem-se de forma descontrolada e ameaçam alastrar aos países vizinhos (há notícias de protestos pelo menos também em Marrocos, na sempre instável Argélia, no Iémen,...). O poder responde, como era previsto, de forma brutal, mas os manifestantes não parecem dispostos a desarmar até conseguirem o que os determina nesta luta: a queda do poder instituído e a consequente ‘mudança’ de regimes oligárquicos estabelecidos há décadas, implicando o julgamento das seus responsáveis. Se bem que, por agora ultrapassado pelos acontecimentos, o sempre presente fundamentalismo islâmico não deixa de espreitar a hipótese de aproveitamento do estado deplorável, quase caótico, a que a situação social chegou.

A enorme insatisfação de vidas desaproveitadas, de onde resulta a revolta, parece, por enquanto, focalizada na substituição da classe dirigente, tida como responsável pela situação de miséria actual da esmagadora maioria da população, em contraste com o fausto exibido por aquela, resultado de décadas de sedimentada corrupção. Ora, mais do que explicações baseadas nas circunstâncias – controle social pelo fundamentalismo religioso (islâmico, na circunstância), força do poder militar (o caso do Egipto, na circunstância) - importa aqui, sobretudo, fazer a destrinça entre as especificidades próprias da região e o que se afirma geral ao conjunto da economia mundial.

Com efeito, se por um lado é bem verdade que os poderes instituídos nesta zona do Globo (como noutras, é certo) utilizam o Estado sobretudo em seu proveito próprio, gerando cliques dirigentes que têm vindo a desenvolver níveis de corrupção obscenos (com o beneplácito, se não mesmo o apoio, das ditas democracias ocidentais, apenas empenhadas em preservar o manancial de recursos proporcionado por esses países), por outro, é possível detectar por trás de todas estas manifestações, problemas globais cuja raiz ultrapassa em muito as especificidades sociais, políticas e religiosas da região e se têm espalhado por todo o lado – como a desocupação crescente da população activa, por força da gradual destruição líquida de empregos gerada por ‘esta’ globalização.

Na descrição de um jornalista egípcio ‘as revoltas têm sido em grande medida lideradas por jovens desesperados cansados da falta de oportunidades e da repressão’. Jovens melhor qualificados e cada vez mais informados, sem emprego nem perspectivas de futuro, a quem apenas resta o desespero e a revolta. Sem a almofada que o acesso aos esquemas de segurança social permite e que, por enquanto, tem contribuído para evitar, não obstante alguns indícios ameaçadores, maiores níveis de revolta e de violência entre os jovens europeus. Até quando? O efeito de contágio pode não ficar confinado ao Magrefe e aos países árabes e atravessar, um dia destes, o Mediterrâneo.

Indiferentes aos protestos do Cairo, no Egipto, os banqueiros de Davos, na Suíça, insistem na via da desregulação (a ‘tal’ que conduziu à Crise...) para atingirem maior eficiência nos proveitos – a eficiência pela destruição de empregos que se prolonga na revolta das ruas do Cairo e ameaça alastrar a muitas outras paragens!

Depois de Davos, porém, segue-se mais um Fórum Social Mundial, desta vez em Dakar, a mostrar que é possível – mas bem difícil – construir uma alternativa a esta globalização.

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