quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

A cultura do novo capitalismo – III

Onde fica o Estado Social?

A única semelhança entre os programas de Alegre e Cavaco é que, ambos podem ser reduzidos a uma frase, a pouco mais que uma expressão, na prática a um ‘slogan’ de campanha. Mas enquanto o de Cavaco se esgota no endeusamento individualista do seu próprio perfil pessoal – ‘os portugueses conhecem-me’ – agora mais a medo, não vão por aí rebentar mais alguns escândalos que ponham em causa aquilo que se considerava uma fortaleza inexpugnável, a idoneidade do candidato; o de Alegre convoca as energias colectivas num projecto que tem vindo a sofrer fortes ataques por parte do actual poder dominante neoliberal – a defesa do Estado social – tendo como pano de fundo o conflito de prioridades na aplicação dos sempre escassos recursos financeiros públicos.

Não se trata aqui de defender o Estado Social como se fosse o último reduto que ainda subsiste perante a avalanche liberal (ainda que o possa ser verdade). Para além da velha querela entre o Estado opressor e a liberdade individual, entre estatismo e esfera privada, do que se trata mesmo é da defesa de direitos considerados inalienáveis e que merecem uma tutela especial, as mais das vezes consagrados nas constituições nacionais, precisamente por se tratar de áreas essenciais à defesa e promoção da dignidade humana e, porque susceptíveis de exploração económica, sujeitos ao domínio (político, social ou meramente pessoal) dos mais fracos pelos mais poderosos.

Hoje, é certo, ninguém se atreve a contestar a sua necessidade. Daí que a linha de demarcação entre os que assumem na prática o Estado Social e os que apenas proclamam defendê-lo, tem de encontrar-se muito para além da retórica do discurso, detecta-se na coerência da acção concreta de cada um, através da sua história pessoal e dos objectivos que a norteiam. Numa altura em que a palavra de ordem parece ser resistir, Alegre demonstra, pelo seu passado e pela sua história recente, ser o mais capaz de cumprir essa função, de enfrentar a onda liberal que o pretende reduzir ou mesmo desmantelar e assim garantir melhores condições na estruturação de um novo modelo de sociedade.

Gerando, por isso, grandes inimizades mesmo dentro do seu próprio partido. Como foi o caso de Correia de Campos, incapaz de perceber o que efectivamente pode estar em jogo nesta eleição, ou de saber distinguir objectivos políticos de agravos pessoais. Depois de se ter evidenciado como péssimo gestor, enquanto ministro, na condução de um projecto de racionalização do SNS (não está aqui em causa a sua eventual valia intrínseca), aparece agora como político mesquinho e sem visão, preso na emoção primária da sua pequena história pessoal e dos seus ódios de estimação – bem imbuído, diga-se, da cultura ‘cavaquista’. Só isso explica, mais que o elogio a Cavaco, a defesa que faz da estabilidade política como valor superior ao da defesa do Estado Social. Como pretende a direita e, enfim, a cultura do novo capitalismo.

Precisamente a atitude inversa do que se torna exigível para se poderem enfrentar as diferentes crises com que nos confrontamos, financeira, social, moral, cultural,... enfim, uma Crise Global gerada pelas lógicas próprias deste sistema. É aí que a existência e a defesa do Estado Social, nas suas diferentes áreas – saúde, educação, trabalho, a própria justiça,... – se demonstra importante, essencial mesmo à construção de uma alternativa ao actual modelo de sociedade, baseada numa nova cultura democrática. Onde os valores da exigência pessoal e cívica superem os que afirmam a primazia dos benefícios imediatos a qualquer preço (que esta ‘cultura do novo capitalismo’ instituiu), os da sustentabilidade civilizacional sobre os do curto prazo predatório, a solidariedade e a coesão social sobre o individualismo e o salve-se quem puder, a tolerância sobre o fanatismo, a participação sobre a indiferença,...

O que implica uma visão estratégica capaz de delinear, com realismo e a necessária ousadia, as estruturas sociais de uma sociedade mais habilitada a enfrentar o futuro respondendo aos desafios do presente, em domínios vitais para as pessoas como a saúde ou a segurança, a justiça e a educação. Ou tão básicos à coesão social como a organização do trabalho e a garantia do seu acesso a todos os elementos da sociedade. Porque de direitos se trata e não de regalias, como o pensamento liberal teima em praticar – sem a coragem, no entanto, de o proclamar. Porque, enfim, é imprescindível alterar o paradigma económico do actual modelo de desenvolvimento, baseado no crescimento contínuo e é sobre estes pilares que deve assentar a construção de uma alternativa.

Cavaco, fiel ao pensamento liberal, resumir-se-á a proclamar a defesa do Estado Social – mas pouco fará para o proteger.

Alegre, pela sua história, garante lutar pela sua intransigente defesa. E isso é o essencial, por agora.

Sem comentários: