quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

A crise é só para alguns...

A propósito de uma proposta sobre emprego do P. Anselmo Borges
Para não fugir à regra e manter-se viva a tradição, os noticiários desta passagem do ano reproduziram quase à letra os conteúdos dos anos anteriores. Se em alguma coisa diferiram foi nas imagens de uma ainda maior ostentação financeira, num aparente (despropositado?) alarde de um fausto pouco condizente com a actual crise económica! Maiores levantamentos de dinheiro no Multibanco, passagens de ano esgotadas, centros comerciais a abarrotar, vendas de automóveis de topo a disparar,... A tendência para o exacerbado consumo que caracteriza esta época não só se manteve, como parece ter-se acentuado. Mas afinal onde é que está a crise?

É certo que, pontuando o clima de euforia generalizada, vão surgindo também as notícias que assinalam a existência da crise e, se atentarmos bem, até mesmo onde ela se localiza e quem na realidade lhe sofre os efeitos principais. Fábricas e empresas a fechar, despedimentos diários às centenas, relatos de situações dramáticas um pouco por todo o País (objecto frequente de aproveitamento mediático),... parecem não deixar dúvidas. A crise concentra-se no trabalho, mais propriamente na falta dele – nas pessoas que o perderam, ou que a ele ainda não tiveram acesso! Mas ao lado dos que não têm trabalho – pasme-se! – há quem se ‘queixe’ de ter trabalho demais!

A realidade desta crise é, pois, a de que ela apenas atinge de forma drástica uma parte da população trabalhadora, por enquanto ainda uma minoria – os excluídos do trabalho – apesar das ‘beliscaduras’ que vão já aferroando, de forma indirecta (normalmente pela via fiscal), por vezes acentuadamente, a maioria dela. É seguramente sobre os desempregados de todas as origens que mais se fazem sentir os efeitos ‘desta crise’ – sintoma e consequência do verdadeiro problema que a originou: o esgotamento do modelo de crescimento que sustentou, durante décadas, a relativa prosperidade ‘ocidental’.

Nas sociedades actuais, o critério fundamental para aferir o grau de sustentabilidade e equilíbrio sociais é o da empregabilidade, da capacidade demonstrada na manutenção e criação de empregos. Inviabilizado o recurso ao crescimento económico, como até agora, para a promoção de tal desiderato, tenho vindo a insistir em que a solução para a questão do emprego passa por uma melhor distribuição do esforço de trabalhoprimeiro a redução da sua duração actual, depois a sua repartição/redistribuição mais equilibrada. Na sequência, aliás, de múltiplas análises e chamadas de atenção, remontando pelo menos aos idos ‘anos 90’ (cf. V. Forrester, M. Husson,...).

Os enormes ganhos de produtividade alcançados ao longo das últimas décadas, a par das dramáticas consequências laborais da actual crise, exigem uma outra forma de distribuição do esforço de trabalho, melhor adaptada às novas condições tecnológicas, economicamente mais abrangente (porque mais produtiva), socialmente mais inclusiva, politicamente mais democrática. Mas isso significaria uma outra organização do trabalho, implicando uma outra organização social, com efectiva capacidade política sobre o poder económico. Enfim, uma outra realidade política!

Mas, por agora, pretendo apenas registar a convergência – pelo menos ao nível dos resultados pretendidos – com recentes propostas de sectores da Igreja Católica que parecem ter finalmente ‘descoberto’ a necessidade de se proceder a essa redistribuição do tempo de trabalho. Não de um ponto de vista social e político, mas apenas, como porventura lhes compete, apelando à ‘solidariedade individual’, à dimensão ética de cada indivíduo. Foi isso que o Padre Anselmo Borges, que ouço e leio sempre com interesse e as mais das vezes com gosto, há dias veio dizer à televisão: cada pessoa com trabalho deveria ceder parte do tempo de que dispõe a outro(s) dele carecido, por forma a que se consiga uma maior igualdade no esforço e na participação de cada um.

Nas condições políticas actuais, contudo, os resultados desse apelo a uma ‘solidariedade interior’ já só irão ser possíveis através de uma ‘forçada transformação social’. Releva-se, contudo, a sintomática aproximação de objectivos – de terapia tão óbvia, de concretização tão improvável, no imediato! – perante uma realidade social que exige mudanças profundas, sobretudo naquilo que a sustenta e que, paradoxalmente, maior fragilidade vem demonstrando: o emprego.

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