quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Liturgia orçamental: Notas à margem do OE11 – III

O Sumo Sacerdote: a tutelar intervenção do FMI

Logo que foram conhecidas as principais orientações do OE/11, percebeu-se, pelos comentários dos analistas do costume, que esta era apenas a 1ª etapa no processo de desmantelamento do Estado Social e que, independentemente das suas sequelas e vicissitudes, iria culminar com a chegada do FMI. Toda a dramatização exposta nos ‘media’, pelos mais diversos e sempre abalizados especialistas, quanto ao ‘abismo’ em que o país está prestes a cair, tem apenas como objectivo fazer ver a inevitabilidade da sua intervenção no curso da política portuguesa, caucionando e até reforçando o aperto financeiro traduzido nas medidas de austeridade impostas à conta do déficit e da dívida pública, desresponsabilizando, deste modo, os políticos internos.

O certo é que ele já cá está, a sua presença tutelar impõe-se mesmo sem necessidade da sua deslocação física. Desempenha o papel do papão que obriga a criancinha a comer a sopa toda. A ameaça não pode ser mais explícita: o nível de restrições exigido pelo descalabro das contas públicas e do endividamento do Estado já só é possível de impor mediante uma intervenção externa, pelo que, nas circunstâncias, concluem, a chamada do FMI é o mal menor... Mas, acrescentam logo, uma eventual intervenção do FMI não se afastará muito das medidas de austeridade propostas no OE, pelo que, reconhecem, o seu papel ‘resumir-se-á’ a tutelar a sua execução, assumindo o odioso dos seus efeitos mais nefastos, aliviando desse fardo os executantes domésticos, PS, PSD e CDS.

O FMI é, assim, o ausente mais presente nas negociações e demais prelecções (envolvendo partidos, especialistas, comentadores,...) em torno deste OE. O tal que corta a despesa pública, mormente a que sustenta a dimensão social do Estado, em nome de uma redução do déficit ditada pelos famigerados mercados (e imposta pelos cânones liberais): não é por acaso que o PSD fez tanta questão na redução da Taxa Social Única, principal fonte de financiamento da Segurança Social, como moeda de troca ao aumento do IVA proposto pelo PS. O propósito já várias vezes explicitado (foi-se o pudor e a vergonha, nem se preocupam em o esconder), destas ignominiosas investidas é mesmo a destruição imediata do que resta do Estado Social, principal empecilho à pureza do modelo liberal e à selecção dos mais capazes!

Exemplo acabado é o do seu novíssimo bonzo, o ‘nosso’ António Borges (e dos ‘hedge funds’, da Goldman Sachs,...), paladino da criativa desregulação financeira e, mesmo depois da crise que esta provocou, avesso a qualquer reforço de regulamentação. Já depois da sua entronização como acólito do Guardião do Templo/FMI, não disfarça um esgar de despeito ao insistir em vulgaridades (ou provocações?) do género: ‘Os portugueses vivem acima das suas possibilidades!’. E já imbuído do seu novo estatuto, com acinte, proclama: ‘Portugal está de joelhos perante o BCE’. Só não acrescenta por que ínvia razão este não pode actuar directamente junto dos governos, preferindo alimentar a especulação dos intermediários bancários num negócio que lhes é altamente proveitoso, tanto quanto de ruinoso para as populações que lhe suportam os efeitos!

A incoerência do actual discurso do PSD – balanceando entre tiradas de arrojado sentido social (por razões de táctica eleitoral) e afirmações de princípio liberais (conforme explicitado na sua recente proposta de revisão constitucional) – não consegue esconder o propósito de, tão rápido quanto o permitirem as circunstâncias (eleitorais, sociais,...), reduzir à expressão mais simples a dimensão do Estado Social, considerado o principal foco da despesa incontrolável do Estado e por isso de manutenção inviável.

Em lugar de se dar início a um movimento no sentido da construção de um modelo alternativo de desenvolvimento capaz de dar resposta aos inúmeros impasses, sobretudo os de cariz económico e laboral, com que as sociedades actuais se debatem, os políticos do ‘centrão’ obstinam-se na gestão do sistema sem o pôr em causa, para isso recorrendo a medidas tapa-buracos e de puro remedeio. Os cortes financeiros anunciados no OE11 estão longe de resolver o problema ou sequer o minimizar, pelo que, afirma-se, não vai bastar a austeridade anunciada, novos cortes irão ser inevitáveis! Onde, pois?

Inevitavelmente no frágil Estado Social! E se no processo da sua destruição, a Sócrates coube abrir o caminho, a Coelho, já se percebeu, não bastará seguir-lhe os passos. Até porque a ele se juntam, em acesa competição, o ‘nosso’ homem no FMI, Cavaco, Portas & C.a,... que tudo farão, de modos diferentes, por lhe fixar o rumo e marcar o ritmo.

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