quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Nunca como agora... II

O concerto de uma globalização sem conserto

Nunca como agora se pôs tão em dúvida a capacidade dos Estados solverem as suas dívidas, mas também nunca como agora os déficits orçamentais destes foram tão elevados. O certo é que o actual descontrole orçamental advém do facto de os Estados, à conta da retoma económica, terem canalizado enormes ‘apoios’ financeiros para a economia especulativa (grande parte do dinheiro disponibilizado para enfrentar a crise foi parar aos bolsos de especuladores e agiotas sob pretexto de se estar a salvar o sistema bancário – e por arrasto todo o sistema capitalista) e não para a economia real que deles carecia.

A discussão em torno do próximo OE, porventura a peça-chave da lamentável farsa montada para infernizar a vida da maioria dos portugueses, traduz bem a bovinidade que caracteriza a falange dos comentaristas que sobre ele se tem pronunciado. Tanto a versão franciscana do Camilo Lourenço na pública RTP, como a troglodita do Medina Carreira na privada SIC, dão por inevitável (?) o recurso à superior intervenção do FMI, como avalista externo das medidas que os políticos caseiros não tinham coragem de assumir, com receio da mais que certa resistência popular – mas imprevista nos efeitos sociais e reacções eleitorais. Agora, consumado o seu há muito conhecido epílogo com o anúncio das principais medidas de austeridade, os ditos economistas esgadanham-se em ver qual deles se esganiça mais a exigir ainda maior severidade!

Nunca como agora este espectáculo rasca, desta feita na versão da farsa, terá sido levado tão longe: (1) depois dos rombos financeiros provocados por actuações ‘fraudulentas’ – mas permitidas (até abençoadas) pela orgânica do sistema instituído de desregulamentação da economia (cujo paradigma ideológico se expressa no funcionamento criativo dos ‘off-shores’); (2) depois desse sistema ter sido salvo do seu eminente colapso pelos recursos públicos – o desvalorizado dinheiro dos contribuintes; (3) depois de tal operação de salvamento ter endividado a generalidade dos Estados ocidentais para níveis nunca antes atingidos, alguns próximos da bancarrota – por efeito da canalização directa de recursos para ocorrer às situações de maior risco (banca, crise social,...), ou em resultado do enfraquecimento da actividade económica; (4) pois agora, o mesmo sistema prestes a colapsar por essa bizarra mistura de ‘fraudes’ legalizadas com ‘gente’ de má fama (que dizer de instituições que ninguém se atreve, hoje, a defender em público – os ditos ‘off-shores’ – ainda que ninguém se atreva a acabar com elas?), com descarado cinismo e ignóbil falta de vergonha:

· recusa-se a impedir que a especulação lidere o processo de financiamento das dívidas soberanas (com a consequente drenagem dos recursos públicos), o que, nas condições actuais de funcionamento globalizado, implicaria a disponibilização de fundos por parte de entidade pública supranacional, com capacidade efectiva para se substituir aos agentes especuladores a nível mundial (não o ineficaz Fundo Europeu de Estabilização, preso da orientação ideológica neoliberal dominante).

· em contrapartida exige, como forma de obter os recursos necessários para saldar as dívidas contraídas, que os Estados cortem nas despesas com o bem-estar dos cidadãos (reduzindo o Estado Social, indo de novo ao bolso dos contribuintes,...) – ou seja, exige que estes salvem duas vezes o sistema de uma comprovada gestão desastrosa e fraudulenta, em benefício exclusivo de uns poucos!

O sistema não é uma entidade abstracta, difusa, um mero chavão ideológico. Acoberta-se na matraqueada litania do misterioso poder dos ‘mercados’ e revela-se no rosto dos técnicos do FMI (e das agências de rating...), nas medidas propostas no relatório da OCDE, nas orientações e advertências da burocracia da UE, todos concertados – e, nos últimos tempos, bem afadigados – no propósito comum de apoiarem/facilitarem a aplicação interna das medidas de austeridade impostas pelo modelo de globalização financeira neoliberal (por muito que se esforcem em denegrir o rótulo, não há forma de dizer isto de outro modo).

Ao concerto das instituições do sistema na sua perpetuação, só uma resposta igualmente concertada por parte das populações pode revelar-se eficaz. Parece cada vez mais urgente a cooperação global das estruturas que as representam, a nível político, sindical, social. Em tempo de greves gerais nacionais um pouco por toda a Europa, que efeitos políticos teria, por ex., uma acção destas a nível global – ou até mesmo só europeu?

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