sexta-feira, 9 de abril de 2010

Leituras sobre a Crise do Sistema – I

As origens ‘remotas’ da Crise: o processo de desregulação do mercado

Na longa tradição das audições levadas a cabo pelo Congresso norte-americano, ainda a actual crise económica não havia atingido o seu auge e já tinham sido chamados a depor alguns dos principais responsáveis pela regulação dos mercados financeiros, com vista a apurar o papel dos Reguladores Federais na eclosão daquela. Em Outubro de 2008, quando essas audições começaram, perante a perspectiva do colapso do sistema (a ameaça pairou no ar após a falência do Lehman’s, em Setembro), havia a percepção de que os abusos detectados por trás da hecatombe financeira se deviam, antes de mais, a falhas de regulação dos mercados. Importava apurar, nestas circunstâncias, a quem cabia a responsabilidade por tais falhas.

Cedo se percebeu, porém, que as responsabilidades, mais do que atribuir-se a pessoas em concreto, atingiam todo um sistema de organização baseado numa ideologia. Como posteriormente iria sintetizar Stiglitz: ‘A verdade é que a maioria dos erros individuais se reduz apenas a um só: à fé de que os mercados se autorregulam e que o papel do Governo deve ser mínimo’. Ou, tal como evidenciado logo no início das audições pelo senador Henry Waxman, que as conduziu: ‘Desde há muito tempo que a ideologia venceu a governança. Os nossos reguladores, em vez de regularem, facilitaram. A sua crença na sabedoria dos mercados foi infinita. A sua oração passou a ser: a regulação governamental é um erro e o mercado é infalível’.

Retiro estes excertos de um texto recente onde se faz a história exemplar deste período crítico do tempo presente. E onde, na sequência desta citação, se sintetiza o essencial das alterações normativas que, sob o pretexto da ‘modernização financeira do sistema’ num quadro de funcionamento globalizado e culminando o processo de desregulação encetado no início dos anos 80 na era Reagan-Teatcher, mais contribuíram para o descalabro económico que pôs o mundo à beira do colapso.

De acordo com o mesmo texto, ‘Waxman, nesta curta intervenção, refere-se à desconstrução do quadro regulador da era de Roosevelt, através da construção de um quadro desregulador que foi sendo produzido nestes trinta anos de neoliberalismo, usando três instrumentos fundamentais. Primeiro: em 1999, a revogação da lei que regulava o sistema financeiro, conhecida por Glass-Steagall Act (que, basicamente, estabelecia os limites de actuação entre bancos comerciais e de investimento, e entre a banca e a actividade seguradora), que foi substituída pela Gramm-Leach-Bliley Act (também conhecida por Lei de Modernização dos Serviços Financeiros), com o argumento de que o estado norte-americano, no dizer dos promotores da mudança, não poderia estar a viver vestido como um adulto e protegido como uma criança’.

Para abreviar este relato, seguem-se, logo em 2000, ‘a modificação das regras de funcionamento dos mercados de produtos derivados’, em 2004, ‘a eliminação das regras prudenciais para os grandes bancos de investimento, a net value rule (as reservas de caixa), com o argumento de que estes sabiam proteger-se tão bem que não precisavam de cláusulas reguladoras’ e, já em 2007, ‘a eliminação da regra uptick que condicionava as vendas a descoberto’.

O certo é que toda a construção ideológica neoliberal dos últimos 30 anos – baseada na primazia absoluta da regulação automática (ou autorregulação) do Mercado e utilizada para justificar o desmantelamento do edifício regulador erguido por Roosevelt em resposta à Grande Depressão de 29-32 – foi posta em causa pela sucessão de acontecimentos que culminaram naquele Outono de 2008 e por isso não surpreendeu ter parecido soçobrar perante as questões colocadas nas audições do Congresso. Não obstante as contradições da frágil e precária situação actual, a evolução posterior da crise viria a comprovar ser prematuro falar de colapso do sistema.

Vale a pena, pois, continuar a ler ‘A Crise da Economia Global’, título recente (Nov.2009) de Júlio Mota, Luís Lopes e Margarida Antunes (docentes na Fac. Econ. da Univ. Coimbra), para melhor se perceber o contexto em que a crise ocorreu. Que explica o ‘modo como ocorreu’, não ‘porque ocorreu’. Pois isso implicaria uma análise às próprias estruturas do sistema.

Sem prejuízo de se considerar este tema alguma vez esgotado, vale a pena, então, tentar-se uma aproximação às causas profundas que determinaram a crise.

(...)

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