quinta-feira, 1 de abril de 2010

Uma questão de memória …


«Um dia, aproximadamente por esta mesma época, fui de excursionista a Mafra.
Tinha nascido na Azinhaga, vivia em Lisboa, e agora, quem sabe se por um cúmplice aceno dos fados, uma piscadela de olhos que então ninguém podia poderia decifrar, levavam-me a conhecer o lugar onde, mais de cinquenta anos depois, se decidiria, de maneira definitiva, o meu futuro como escritor.
(…) Dessa breve viagem (não entrámos no convento, apenas visitámos a basílica) não guardo a mais viva lembrança que a de uma estátua de S. Bartolomeu colocada, e aí continua, na segunda capela ao lado esquerdo de quem entra, a que chamam, creio, em linguagem litúrgica, o lado do Evangelho.
Andando eu, pela minha pouca idade, tão falto de informação sobre o mundo das estátuas e sendo a luz que havia na capela tão escassa, o mais provável seria que não me tivesse apercebido de que o desgraçado do Bartolomeu estava esfolado se não fosse a parlenga do guia e a eloquência complacente do seu gesto ao apontar as pregas da pele flácida (ainda que de mármore) que o pobre martirizado sustinha nas suas próprias mãos.
Um horror. No Memorial do Convento não se fala de S. Bartolomeu, mas é possível que a recordação daquele angustioso instante estivesse à espreita na minha cabeça quando, aí pelo ano de 1980 ou 1981, contemplando uma vez mais a pesada mole do palácio e as torres da basílica, disse às pessoas que me acompanhavam:
«Um dia gostaria de meter isto dentro de um romance.»
«Não juro, digo só que é possível.»

José Saramago
, in «As Pequenas Memórias»

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