segunda-feira, 1 de junho de 2009

O automóvel, o mercado, as crises e as Europeias

III – Motores gripados

Se há objecto que pode ser erigido em símbolo da sociedade moderna ele é o automóvel. É sabido que a denominada civilização ocidental se constrói em torno de dois eixos fundamentais, que dela emergem como valores estruturantes inquestionáveis: a autonomia individual e a mobilidade. E o principal ícone dessa construção, simultaneamente artífice e artefacto civilizacional, síntese daqueles dois basilares valores, concretiza-se no automóvel individual, autêntico objecto de culto, imprescindível utensílio quotidiano, que organiza toda a vida social.

A interdependência estabelecida entre o automóvel e a organização social implica que qualquer alteração ou perturbação num deles afecta irremediavelmente o outro. Não é concebível esta civilização sem o automóvel, todos os cenários que se perspectivam para o futuro incluem-no inevitavelmente, ainda que sob as formas mais fantasistas e imaginativas. Mesmo o mais que previsível esgotamento da principal fonte de energia que o move, o petróleo, não impede, antes acentua a necessidade, que se concebam e idealizem modelos enquadráveis noutro paradigma energético.

Desde que soou o alarme sobre o esgotamento dessa energia fóssil, nenhum construtor deixou de apresentar alternativas e planos de reconversão completa das respectivas gamas, na base do que se pretende venha a ser esse referido novo paradigma energético. A necessidade precipitou a inovação no sentido da adopção de novas soluções. Para já no campo das mecânicas e do automóvel. Da evolução convenientemente lenta, para não criar rupturas na estrutura empresarial – leia-se, para não perturbar interesses instalados – o sector passou a viver numa agitação e instabilidade invulgares, entre falências, intenções de aquisição, apoios estatais gigantescos e o anúncio constante de planos de reconversão.

Mas não é só no sector automóvel que os dias vão agitados. A avaliar pela desordem instituída nas sociedades actuais, os limites parecem estar também a ser atingidos a nível da organização social, a pressão sentida em diversos domínios da vida das comunidades ameaça romper e explodir: instabilidade na actividade laboral com destruição de empregos, desigualdades ofensivas e crescentes, degradação e violência urbanas, corrupção e delinquência organizadas,... A crise mais acentuou este panorama, apontando rupturas eminentes, em especial a nível da reconversão da actividade produtiva, gerando problemas de dimensão imprevisível.

É por isso que o paralelo com o sector automóvel se afigura pertinente. Decididamente, os motores de ambos – o de combustão de energias fósseis, no caso do automóvel, o mercado, no que respeita à organização social – parecem caminhar para o seu termo com o respectivo prazo de validade quase a expirar, ou, utilizando a terminologia própria do sector, os motores parecem prestes a gripar. Relativamente ao automóvel, as soluções técnicas pressentem-se finalmente bem encaminhadas, todos esperam o surgimento breve de um novo ou novos tipos de motor, com a adopção de tecnologias mais limpas, eficientes e sobretudo mais económicas. Com os naturais efeitos de arrastamento positivos sobre o emprego e a actividade económica global.

Ao contrário, tudo se encontra bastante mais indefinido, no que respeita à organização social. Subsistem (ou resistem?) as velhas fórmulas mercantis de pendor liberal (mais refinadas, mas não menos eficazes), tardam alternativas políticas de pendor democrático (na base de um controle acima das pretensas leis naturais do mercado). O poder do mercado teima, pois, em ceder ao poder da democracia. Mas perante a súbita e rápida fragmentação das estruturas tradicionais (nomeadamente a empresa) que suportavam a vida colectiva, urge encontrar soluções melhor adaptadas, a nível da organização social, para responder de forma adequada e em tempo útil aos novos problemas e desafios da sociedade global, impõe-se mesmo reflectir e começar a preparar uma alternativa política à actual globalização – onde o poder financeiro e a força do dinheiro se submetam à supremacia do direito e da justiça.

As ‘europeias’, à partida, constituíam uma boa oportunidade para se efectuar (ou pelo menos iniciar), à escala devida, o debate necessário, mas...
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