sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Crise e pobreza

Manuela Silva (de quem fui aluno no já longínquo ano de 71!), assume muito a sério a sua intervenção social no seio de movimentos ligados à religião católica. Não deixa, por isso (ou talvez seja mesmo por isso), de pontuar, de quando em vez, a sua presença com chamadas de atenção absolutamente pertinentes. Ela e Bruto da Costa representam, do meu ponto de vista, dois dos mais notáveis exemplos de participação cívica na sociedade portuguesa.

Desta feita (Público de 14 Dez. 08) e em plena ‘crise dos ricos’, Manuela Silva é chamada, mais uma vez, a pronunciar-se sobre o estado da pobreza em Portugal (‘a crise das grandes fortunas é mais suportável que a dos mais pobres’, contrapõe). Perante o aprofundamento das desigualdades e a persistente incapacidade política de erradicar a pobreza, afirma sem equívocos: ‘É chegada a hora de integrar (na sociedade) a dimensão de que a pobreza é uma violação de direitos humanos’.

Mas não fica apenas pelas declarações bombásticas ou intenções piedosas, avança mesmo com medidas concretas e imediatas de ataque à pobreza. Havia já em anterior oportunidade sugerido a necessidade da criação de um fundo de emergência social para combater a pobreza, financiado com receitas provenientes dos espectáculos. Não se referia, está bem de ver, ao deprimente espectáculo que tem constituído o desenrolar interminável dos malabarismos financeiros que um ambiente económico dito de ‘mercado livre’ (ou mercado auto-regulado) favoreceu e até impulsionou, de repente transformado em enorme regabofe sob que se acobertam os mui legítimos negócios dos não menos seriíssimos ‘Banqueiros & Pandilha L.da’.

Agora, talvez em razão deste mesmo espectáculo (entretanto levado à cena de forma tão desabrida quanto elucidativa dos mecanismos que, afinal, asseguram a ‘liberdade dos mercados’), vai mais além na sua proposta inicial, juntando àquela outra fonte de financiamento: ‘as grandes fortunas feitas à custa de especulação financeira’. Percebe-se aqui, porventura, algum pudor ou receio em se assumir plenamente a lógica que alimenta essa especulação, daí extraindo as devidas ilações. E por isso, ainda sem pôr em causa o modelo de organização social que a produz, na tentativa de concretizar tal medida, adianta que ‘talvez começássemos pelos salários dos gestores e administradores de grandes empresas... O que se passa nas remunerações de administradores e quadros superiores é um verdadeiro escândalo’.

Curiosa é, no entanto, a conclusão que retira, ao acrescentar de imediato: ‘E não só em termos éticos, é uma situação perigosa em termos de modelo social: cria expectativas em espiral que não vão poder ser alcançadas’. O que mais surpreende, entretanto, é que sejam esses próprios gestores, inebriados pelo êxito fácil e convencidos da sua inesgotável perenidade, a fomentar o estado de coisas que, num frenesim incontido, se voltará, a prazo, irremediavelmente contra eles!

Nas circunstâncias actuais, em que de modo algum é claro o rumo que a situação gerada pela crise irá tomar, as medidas propostas têm o mérito de, ao mesmo tempo que contribuiriam para suprir graves lacunas nos mecanismos de suporte das franjas mais débeis da sociedade – minorando o sofrimento de muita gente – , alertar para a incongruência da manutenção de posições sociais tão largamente distanciadas da realidade social envolvente – contribuindo para uma maior consciencialização de toda a sociedade.

Mas, é sabido, nem isso o poder construído em torno do mercado está disposto a ceder – mesmo admitindo que, aliviando deste modo a tensão social que começa a manifestar-se de forma ameaçadora, se criariam melhores condições para a aceitação do sistema. Tendência para o suicídio?

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