domingo, 9 de novembro de 2008

As explicações da crise - II

A máquina trituradora

A primeira nota distintiva com que os liberais (incluindo os ‘neo’) apreciam diferenciar-se diz respeito à importância decisiva que atribuem à autonomia do indivíduo e, daí, ao seu desenvolvimento livre de condicionamentos atrofiantes e tutelas asfixiantes. Mostram-se mesmo particularmente severos perante as ameaças que decorrem da sua menorização, quando não mesmo do seu esmagamento, diante do poder do Estado, bastas vezes apodado de verdadeira máquina trituradora das capacidades pessoais e invasora da esfera privada de cada indivíduo, castrador do seu génio criativo, inventivo e ambicioso – como se comprazem em proclamar!

Advogam por isso a teoria do Estado mínimo, reduzido àquelas funções tidas como indispensáveis para garantir a liberdade dos indivíduos em sociedade – legislativa, judicial, segurança (interna e externa), fiscal – excluindo-se quaisquer outras (as sociais, por ex.) que possam influenciar ou pôr em causa o seu espontâneo desenvolvimento. Daí o papel atribuído ao ‘mercado livre’, enquanto regulador automático, supostamente neutro e, se liberto de condições, imune à influência sempre nefasta de interferências externas, porque desviantes da norma que melhor garante decisões optimizadas.

Refira-se desde já e para que não restem dúvidas que o desempenho histórico do Estado explica e justifica, em parte, as visões críticas do seu papel. Na esmagadora maioria das vezes, o Estado arrecada os impostos de todos e, na volta, enreda-os em burocracias, devolve-lhes escassos serviços básicos (quase sempre deixando muito a desejar), faz-se desfrutar (qual meretriz bíblica) pelos arrivistas do costume. Mas o que a actual crise demonstrou está longe de implicar o Estado na sua génese (não obstante algumas tentativas grotescas nesse sentido!), bem pelo contrário. Na hora da aflição o que se viu e se assistiu foi à intervenção maciça do Estado na actividade económica, em resposta ao mais lancinante e descarado apelo dos seus principais detractores implorando a sua protecção, para salvação do sistema – em nome da salvação colectiva!

Ora, o que mais importa aqui acentuar é que em todo este processo que redundou na mais grave crise capitalista de que há memória, não há inocentes, não há bons e maus gestores: de um lado os honestos cumpridores das normas, do outro os prevaricadores e fraudulentos, venais e corruptos, dispostos a lançarem mão dos mais baixos expedientes para atingirem os seus fins. Não. Estas situações assentam num padrão comum de comportamento implantado pela tecnocracia neoliberal (a ‘classe’ dos gestores) e são, acima de tudo, o resultado histórico de um processo de interligação dialéctica entre três momentos simultâneos, aqui dissecados apenas para efeitos de análise:

– O momento teórico, em que se defende – e consegue – que o mercado ascenda, no plano económico, ao estatuto que a democracia detém, no plano político. O mercado corresponderia então à mais evoluída forma social de regulação económica, tanto mais perfeita quanto mais liberta de condicionamentos. Mercado e democracia passam, assim, a constituir o suporte institucional básico e indissociável das ‘modernas sociedades de consumo’.
– O momento ideológico, em que a adopção fervorosa deste quadro teórico gera a percepção de que só o ‘mercado livre’ – leia-se, desregulado – tem capacidade para impulsionar a criatividade e gerar progresso, dando lugar a um novo extremismo ideológico, o fundamentalismo de mercado, que tritura e afasta quem a ele se tentar opor e que, por isso, passa a actuar como um autêntico colete de forças sobre os agentes do sistema (os gestores, em primeiro lugar).
– O momento das aplicações práticas, em que uma criativa e muito imaginativa dinâmica interpretativa do mercado toma conta da gestão económica, deixando meio mundo inebriado com os feitos alcançados em termos de progresso tecnológico (se bem que a origem do actual ‘boom’ remonte aos anos 70, em Silicon Valley, antes, pois, da onda liberal vingar) e de ardilosas ‘engenharias’ financeiras (as múltiplas formas engenhosas de ‘fazer dinheiro’!). O outro meio mundo, diga-se, ou não se apercebe ou desconfia – e com razão – de tanta fartura. Com os resultados agora à vista!

O que importa então acentuar é que ‘este tipo’ de fraudes e de corrupção acontece não por razões unicamente derivadas dos aspectos pessoais e psicológicos dos seus intervenientes, mas pelo contrário é o próprio sistema que a isso induz. A verdadeira máquina trituradora das capacidades do indivíduo não está, pois, no Estado, mas antes num sistema que lhe confisca a honestidade, coarcta a liberdade e o impede de qualquer desvio às normas do mercado por que se rege!
É, pois, sobre o sistema e o modelo que o sustenta – o modelo mercantil – que devem incidir todos os esforços na busca de soluções alternativas.

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