sábado, 4 de outubro de 2008

Os três tempos da resposta ‘neo-neo-liberal’ à crise

É indisfarçável a atrapalhação e o incómodo dos liberais perante a crise financeira, sobretudo pelo carácter intervencionista da resposta que se encontra a ser preparada para a ultrapassar, a única possível dada a sua dimensão e as circunstâncias que a rodeiam. Os malabarismos linguísticos e mentais a que se sujeitam convocariam um gesto de dó e piedade não fosse dar-se o caso de estarmos a tratar com calculistas insensíveis, que à primeira oportunidade não terão qualquer rebuço em de novo recorrerem e atiçarem os instintos mais primitivos, onde seguramente não cabe aquele tipo de sentimentos. Mesmo quando, por resquícios de pudor ou mera táctica política, o contestam, a sua cartilha impõe-lhes a defesa, na prática, do ‘salve-se quem puder’ em que se baseiam as regras da selva e do primitivismo humano.

Mas passado o primeiro momento de desorientação e pânico, eis que começam a tentar erguer-se do trambolhão sofrido, ainda muito combalidos mas sempre arrogantes e convencidos da sua absoluta razão. Tão convencidos que nem se dão conta do grotesco de algumas situações – resultado de haverem passeado impunemente o seu absoluto domínio ideológico ao longo dos últimos 20 anos(!!!) e sintoma da dificuldade em assumirem o fracasso e aceitarem novas realidades.

Tudo se prepara, pois, para que a crise actual seja ‘atacada em três tempos':

1. Num primeiro momento – o presente – importa conter os efeitos da crise e evitar que alastre e contamine o resto da economia, salvando o barco de se afundar, para o que foi gizado o plano financeiro mais dispendioso da História que irá, assim se anuncia, eliminar os ‘activos tóxicos’ (?) – os incobráveis – das megaempresas financeiras. Sobre o tema já muito se disse e ainda muito haverá por dizer, sobretudo à medida que o mesmo for avançando.

2. Em seguida e como prova da boa fé dos poderes públicos promotores de tais medidas, convirá instaurar um ‘novo’ dispositivo de reguladores mais fiáveis (!) que os actuais – a principal falha do sistema, dizem – por forma a garantir o retomar da confiança indispensável ao normal funcionamento dos mercados e a acautelar, assim o esperam, a repetição destes arreliadores sobressaltos.

3. Por último, na sequência da atribuição da responsabilidade de tudo o que se passou a comportamentos fraudulentos ou corruptos, recorrer à justiça e ser implacável com os prevaricadores – com a conveniente publicidade devidamente controlada por poderosas campanhas de marketing, pois importa alardear perante a opinião pública a ideia de que os ‘maus’ são castigados (as ‘massas’ agradecem o gesto), vibrando com o arremedo de punição dos que vierem a ser designados responsáveis ou culpados pela actual crise. “Culpados?” – irão protestar os implicados. “Nós apenas nos limitámos a interpretar de forma criativa as regras do mercado”.

Tudo isto se baseia, então, no pressuposto de que o sistema é bom, os seus utilizadores é que são maus e, portanto, há que (1) remediar o mal feito, (2) pôr trancas à porta e (3) castigar os infractores – e partir para outra (ou esperar pela próxima?).

Ora, sem se admitir que é na natureza de um sistema que transformou o mundo num imenso mercado (onde só tem valor o que se pode transaccionar e onde, portanto, tudo se compra e tudo se vende), que radica a origem do problema, não é possível encontrar o antídoto adequado à sua resolução. Toda a racionalidade e lógica do sistema assentam precisamente nos instintos mais irracionais e incontrolados, pelo que todas as tentativas de lhe limitar os excessos conduzem inevitavelmente ou (1) à sua natural transgressão ou (2) à deformação da sua natureza (porventura a um outro sistema).

A submissão do poder político à ideologia do mercado é de tal ordem que nem a descomunal dimensão dos apoios que se preparam para o salvar da derrocada é suficiente para o levar a questionar a sua natureza autofágica e destruidora de tudo em seu redor. Encara-se como natural e lógico que o Estado – a expressão pública da vontade colectiva – assuma cobrir os prejuízos privados, mas não gerir e arrecadar os resultados obtidos, ademais através de um processo produtivo integralmente social.

A cegueira ideológica e a defesa de interesses particulares têm impedido a indispensável reorganização social a tempo de se evitarem crises de natureza bem mais profunda que a actual. Nunca como agora se aplicará com tanta propriedade a sabedoria do velho mito de Midas, o rei frígio que transformava em ouro tudo em que tocava,... até a comida que levava à boca, obviamente impedindo-o de se alimentar!

Afinal, o que deverá acontecer mais para que as sociedades, tal como Midas para não morrer de fome, sejam obrigadas, antes que a destruição as atinja, a superar esse poder mirífico ‘de transformar tudo em ouro’ que parece emanar do mercado, passando a pautar a sua actividade por formas de organização social que assegurem, pela maior sobriedade e moderação, os indispensáveis equilíbrios ecológicos e a sustentabilidade do planeta?

3 comentários:

José M. Sousa disse...

Primeiro-ministro do Luxemburgo diz que tem consideração "próximo de zero" pelos banqueiros, segundo o Público

Anónimo disse...

É pena que só agora o diga,...ou melhor, que o diga e não tire as devidas ilações,...ou ainda melhor, que não aproveite para repensar tudo aquilo em que acredita e tem praticado.
Eu é que não acredito (sou um homem de pouca ou mesmo nenhuma fé!) que estes acontecimentos, passando-lhe mesmo à frente do nariz, lhe façam mais que uma passageira comichão!!!
Mas tiram-se muitos ensinamentos e é sempre útil observar estas 'pequenas' quezílias ou contradições entre os protagonistas desta tragicomédia!

José M. Sousa disse...

Ele podia começar por acabar com o paraíso fiscal e buraco negro financeiro que é o seu próprio país, dando o exemplo!