terça-feira, 23 de setembro de 2008

Crise? Qual crise?

II – Mercado regulado?

O agravamento dos últimos dias na escalada da crise económica, encontrou maior expressão na incontrolável crise financeira dos EUA e na celeuma em torno do preço dos combustíveis. Em ambos reclama-se da falta de transparência no funcionamento dos mercados e, bem assim, do fracasso do papel desempenhado pela sua regulação e pelos reguladores. Certo é que as falhas que desencadearam e explicam a crise, estão a pôr nervosos os mais indefectíveis prosélitos do ‘primado do mercado’ – que não atinam com a terapia a adoptar!

Refira-se, desde já, que a aceitação da tese do ‘primado do mercado’ na organização da vida em sociedade, impondo-se à política (voltaremos ao tema mais adiante), colide, na prática (e em teoria), com os condicionamentos impostos por qualquer tipo de regulação externa e, portanto, pretender conciliar ‘mercado’ com ‘reguladores’ é, por natureza, o mesmo que tentar provar a quadratura do círculo. Ora, é precisamente a partir das prestações tidas na última quinta-feira, 18, dos três comentadores residentes no programa televisivo com esta designação – ‘A quadratura do círculo’, na SIC/N – a propósito do preço dos combustíveis, que melhor se podem elucidar as diferentes expressões dos que hoje se manifestam adeptos das virtudes do mercado.

Para entrada no tema, Lobo Xavier – em coerência com a doutrina – atira desafiador: “eu nem sei bem o que é isso da regulação”. E complementa esta ideia com uma pergunta lançada em resposta às dúvidas de António Costa sobre os excessivos lucros que as gasolineiras estariam a auferir mantendo o preço dos refinados face à queda do preço do crude: “e você considera ilegítimo que essas empresas pretendam o máximo lucro?” Dúvida e interrogação que sintetizam a prática ultraliberal sobre o mercado: a defesa do máximo lucro, sem entraves nem estorvos. Lançadas quase em tom de desafio, estas duas proposições encerram toda a lógica dos princípios em que o mercado se movimenta (ou pretende movimentar-se).
Pacheco Pereira – dominado pelo individualismo céptico (ou pragmático?) – alinha pelas mesmas posições neoliberais do seu colega, mas faz questão de frisar a necessidade de se vir a apurar – pelos reguladores – se houve ou não cartelização no preço dos combustíveis. A visceral descrença no homem (sustento principal da sua exacerbada verborreia liberal), leva-o a sublinhar aquilo que lhe parece essencial: o risco do reforço do Estado, caso se desvalorize o peso do mercado na sociedade, dado que este representa, na sua óptica, o principal contrapeso, na linha de defesa liberal, ao poder tentacular daquele.
Por sua vez, António Costa – entre o idealista e o pragmático (ou táctico?)– crê, não sei se convictamente, na possibilidade de funcionamento de um mercado regulado – que, neste caso, afirma, não funcionou. Culpa dos reguladores que, ou não existiam, ou se existiam, não actuaram. De passagem, profere a já habitual diatribe contra ‘esta economia de casino’ (expressão já muito desvalorizada, ainda que válida, pois até o McCain afirma que quando chegar à Casa Branca, se dispõe a varrer a Administração da sua influência...), figura de retórica a que se recorre como atestado de filiação na esquerda, embora, não raro, seguida de prova de fé nas virtualidades do mercado!

Três posições que, de algum modo, identificam as correntes principais do actual pensamento dominante liberal – o denominado pensamento único – onde as divergências se detectam mais no grau de regulação perfilhado do que na natureza das fidelidades ideológicas e políticas: do liberalismo puro e duro às pretensas 3ªs vias ‘blairistas’; da fé no mercado livre (solto de quaisquer condicionamentos, regras ou intervenção pública) à esperança no mercado regulado (de pendor mais ou menos keynesiano); da democracia liberal à democracia social de mercado. Pelo meio, um liberalismo com posições depuradas dos aspectos mais conservadores ou tradicionalistas (com reflexo sobretudo a nível social e político) e que, mais por ‘tacticismo’ que por convicção, não prescinde de um certo grau de regulação.

Ponto comum incontornável: a defesa do mercado e do papel central por este desempenhado na sociedade. Divergências? Enquanto os dois primeiros apostam num mercado tendencialmente desregulado (em graus diversos), o último pretende-o tendencialmente regulado. A realidade actual, porém, estabelece que, independentemente das posições teóricas, o mercado não subsiste sem regulação!

Mas o que significa então, hoje, mercado regulado?

1 comentário:

Carlos Borges Sousa disse...

O que é mesmo e verdadeiramente surpreendente são as cambalhotas que, sem quaisquer escrúpulos, estão a ser empreendidas pelos costumeiros comentadores da nossa praça, que de tão, tão, tão neocons passaram, num ápice, a defensores da intervenção do Estado, recorrendo a questões de "fé" como delirante argumentário